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Coronavírus Hábitos e Consumo no Segundo Ano da Pandemia

Christian Dunker: 'Em uma situação catastrófica, não perder vale muito'

Atitude geral de otimismo revelada pela pesquisa Datafolha denota apreciação da nossa sobrevivência

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Christian Dunker

Psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, é autor, entre outros livros, de "Uma Biografia da Depressão" (Planeta) e "Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: uma Psicopatologia do Brasil entre Muros" (Boitempo)

O que imaginamos sobre o futuro, próximo ou distante, não é apenas uma especulação sobre incertezas, mas uma influência sobre nossa tomada de decisão hoje. O futuro que projetamos cria uma reacomodação transformativa do passado.

Nossa história, atrás de nós, vai mudando conforme criamos perspectivas à nossa frente, limitando ou expandindo o tamanho de nosso presente.

Uma viagem como a que a Covid-19 nos impõe pode se tornar ainda mais longa se não vemos seu ponto de encerramento. Ela pode se transformar em estranho sentimento de sobrevivência quando olhamos para a difícil travessia feita até aqui.

Esse processo não é apenas individual, é composto pela partilha social de afetos, isto é, a maneira como interpretamos a felicidade ou sofrimento dos outros em relação aos nossos, em uma negociação coletiva que antecipa qual será a paisagem mental do futuro e, consequentemente, o valor do hoje em relação ao amanhã.

Nesse sentido, a pesquisa Datafolha faz um retrato de tal processo. Mesmo que as circunstâncias trazidas pela pandemia não sejam iguais para todos, ela confirma a atitude geral de otimismo (85%) e de grande otimismo (61%).

Ora, o otimismo é uma atitude que comporta muitas determinações, desde a ideia de esperança, que é um nome para o nosso desejo de avançar, até o otimismo negativo, no qual predomina a confiança, que é um termo usualmente referido a não perder.

Apesar da precariedade da situação política e dos níveis elevados de inflação e desemprego, apenas 5% declaram-se muito pessimistas, número semelhante aos que são contra a vacinação. Isso pode ser atribuído, em parte, à lei do infortúnio.

Em uma situação catastrófica não perder vale muito, mas, em tempos de prosperidade, não perder pode ser vivido como estagnação.

A valorização do que temos, a começar pela nossa própria sobrevivência presente, em detrimento do que sonhamos e ambicionamos, é congruente com uma série de indicadores da pesquisa. As mulheres, público ao qual podemos atribuir maior disposição ao cuidado e à preservação dos laços, estão 7 pontos percentuais mais otimistas que os homens (88% ante 81%).

Também há a percepção geral de que relações entre pais e filhos, bem como entre cônjuges, melhorou (principalmente segundo as mulheres), ainda que possa ser lida como aumento da dependência cruzada, emocional e economicamente, e não necessariamente de qualificação de laços.

O aumento de 17% na adoção de animais de estimação e de 11% na expectativa de cuidado de plantas e animais vai na mesma direção, ainda que possa ser um efeito correlato ao adiamento de filhos.
Contudo, se esse otimismo defensivo sobressai na vida privada, ele parece perder força quando perspectivamos a vida pública futura.

A expectativa de empregabilidade aumentou, bem com a de ganhos e de registro, mas isso não combina com os níveis em geral estáveis, com viés de baixa, nas aspirações de consumo. Casa própria, aplicativos, TV a cabo, plano de saúde e carro para lazer estão em baixa. A frequência a lojas, supermercados, transporte público, atividade física fora de casa, visita a parentes e templos religiosos encontram-se em um patamar compatível com a abertura da circulação e o progresso da vacinação.

No entanto, temos dois termômetros indicando vacilação de nossas perspectivas desejantes: a redução do uso de carro para lazer e a brutal queda na matrícula em escolas particulares, de 22% em 2020 para 13% em 2021.

O fato mais contrastivo é que, apesar do otimismo defensivo, 86% relatam sentimentos negativos divididos em dois grupos: tristeza e perda (37%) e medo e contrariedade (26%), incluindo neste último a angústia da falta de vacina e medo de contágio. Isso confirma expectativas teóricas de que esperança e confiança, fatores preditivos para resiliência psíquica, nem sempre são feitos de sentimentos benfazejos e positividade tóxica.

Ora, esses dois afetos evoluem de maneiras distintas na formação social dos sentimentos. Enquanto o luto tende a inibir a ação e a nos levar à interiorização, intensificando o núcleo comum de relações significativas, o medo convoca a decisão de ataque, exteriorizando agressividade ou fuga, individualizando a angústia em preocupação e recolhimento defensivo.

A pesquisa sugere que o peso proporcional do consumo na formação do sentimento de otimismo caiu. A privação da companhia de outros e da liberdade de circulação parece ter valorizado nossa história em pequenos grupos, o que talvez tenha funcionado como fator de proteção, ainda que indireto, para a saúde mental, durante esta difícil jornada rumo a um futuro mais incerto, mas feito de um presente não menos solidário.

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