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Livro acerta ao mostrar como João de Deus se cercou de políticos e artistas para se safar

Médium acusado de crimes sexuais ostentava amizade com ministros do STF e presidentes

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São Paulo

Com João de Deus preso, acusado de múltiplos crimes sexuais, sua defesa foi ao Supremo Tribunal Federal tentar um habeas corpus. Era dezembro de 2018. O pedido parou primeiro no gabinete do ministro Gilmar Mendes. Ele se disse suspeito para julgar. Sorteado em seguida, Luiz Fux também declinou.

Ricardo Lewandowski, a terceira tentativa, topou analisar a petição e não liberou o médium da prisão. Mas dois outros colegas da mais alta corte do país, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli, também já haviam passado por alguma terapia espiritual com João. Idem para os ex-ministros Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa.

Homem e mulher vestidos de branco olham para a câmera
João de Deus ao lado da apresentadora Xuxa - Reprodução/Globoplay

Em depoimento a um advogado-biógrafo, anos antes de virar presidiário, João de Deus lembrou de já presentes borrões policiais em sua trajetória. "É verdade que fui vítima de injustiças: acusações improcedentes e prisões ilegais. Também é verdade que muitos policiais, promotores de Justiça, juízes de Direito, políticos e até mesmo ministros me protegeram."

A declaração foi recuperada pela jornalista Cristina Fibe no recém-lançado "João de Deus - O Abuso da Fé", dedicado a entender como por décadas tantas pessoas fecharam os olhos, por cegueira ou cumplicidade, para o abusador serial que se escondia sob a fama de maior médium vivo do Brasil.

O livro de Fibe se soma a uma safra de obras literárias (como o ótimo "A Casa", de Chico Felitti) e audiovisuais (Netflix e Globoplay produziram as suas) sobre o tema. Uma particularidade aqui: ela estava na linha de frente do caso, como parte da equipe que revelou na imprensa as acusações contra o curador.

Logo no começo, há a reconstituição de um assédio de uma mulher que, com problemas no útero, massageia a barriga de João a pedido dele. Um suposto tratamento. "Foi quando ele pediu pra eu baixar mais a mão. O pênis dele estava como se estivesse saindo da calça pela parte de cima", ela relembra.

Nessa cena, fica clara a popularidade do fundador da Casa de Dom Inácio de Loyola entre poderosos. Bastava olhar as paredes do aposento onde a "Vítima de Outubro" (assim as autoridades a chamavam) foi abusada dois meses antes de João ser denunciado na mídia.

Estavam forradas com retratos dele ao lado de bambambãs da arte e da política. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por exemplo, foi emoldurado sorrindo, acompanhado por Marisa Letícia e pela faixa presidencial. Autografou a foto para "meu amigo João".

Se João fez o que fez, e por tanto tempo, é porque sentia que podia escapar impunemente. O relato de ex-governador de Goiás Marconi Perillo (PSDB), do estado onde ficava o centro de cura, corrobora uma tática usada pelo médium desde que ele se estabeleceu em Abadiânia, no fim dos anos 1970: deixar claro que era próximo ao poder, e ai de quem se metesse com ele.

"Você vê como ele tinha força: ele foi ao Palácio [das Esmeraldas] em audiência comigo uma ou duas vezes. [...] Da última vez em que ele esteve comigo [lá], perguntou: ‘Você conhece o presidente da República, tem relação com ele?’. Falei: ‘Conheço, mas não tenho tanta relação…’. E ele: "Vou ligar pra ele aqui na sua frente". E então pegou o telefone celular, ligou, e a pessoa atendeu na hora."

Perillo não dá nomes, mas pelo registro da última visita do médium à sede do governo goiano, em 2017, deduz-se que fala de Michel Temer (MDB).

Os sinais de que havia algo de podre em Abadiânia eram tão evidentes que é espantoso como os crimes de João Teixeira de Faria, 79, demoraram tanto para emergir. O que Fibe tenta responder é como que "aquele sujeito —nada carismático, diga-se de passagem— pode ter sido tratado durante quatro décadas como Deus, figura intocável".

Uma cumplicidade, ainda que não intencional na maioria das vezes, compartilhada por todos nós, ela diz: jornalistas, atores, familiares de fiéis, donos de pousadas, guias de turismo, voluntários da Casa de Dom Inácio, médicos, delegados, promotores, juízes, ministros e presidentes.

Em 2015, esta repórter começou assim uma reportagem na Folha sobre a diretora do cultuado "Que Horas Ela Volta?": "Uma hora Anna Muylaert volta. A cada dois meses, a cineasta nascida e criada na elite paulistana paga em média R$ 120 numa passagem de classe econômica e voa até Goiânia. Desembolsa mais R$ 120 num transfer rumo a Abadiânia. Lá João de Deus a tem de regresso. É a este Ivo Pintaguy da alma, na agenda de políticos (Dilma e Lula) e celebridades (Fábio Assunção), que Anna recorre desde que terminou de filmar".

Depoimentos assim davam tração ao endeusamento de João, encorpando a imagem de intocável que desencorajou muitas vítimas de buscarem justiça pelo que lhes aconteceu —isso e ameaças mais diretas. Uma dessas mulheres conta o que passou por sua cabeça. "Meu Deus do céu, esse cara faz isso com todo mundo e não tem como eu fazer uma denúncia contra ele, porque olha a proteção do cara, ele anda cheio de capangas! A Oprah [Winfrey] vinha aqui fazer um programa, esse tanto de artista que eu sabia que já tinha vindo aqui, políticos…"

Ela tinha 32 anos e pouco mais de 40 kg, "recém-saída de um relacionamento com um homem bipolar, emocionalmente abalada, anoréxica e com depressão profunda". Procurou socorro. João lhe pediu uma massagem nas pernas, diz. "E ele falava pra eu fazer mais forte, fungando, com aquela respiração nojenta, e foi subindo a minha mão. Pensei comigo: ‘Gente, isso aqui é abuso sexual’." Conta que saiu "mais rápido do que o Forrest Gump" do aposento, mas não disse uma palavra sobre o episódio por anos.

A autora volta a Anna Muylaert. Pouco após chancelar o trabalho do médium neste jornal, a cineasta escutou um amigo descrever como João abusou de uma amiga. "Consultei pessoas que vão muito lá, e elas me confirmaram que todo mundo sabia, todos os funcionários."

Muylaert diz que não tinha ideia do que fazer com a informação. "Quem me confirmou [os abusos] lá do pessoal deles falou que os espíritos avisaram João muito tempo antes que ele ia se foder, que ele ia pagar. Era uma crença geral."

Wilson Francisco, fundador de uma igreja do Santo Daime que morou em Abadiânia entre 1997 e 2000, conta que alguns homens da cidade faziam uma aposta quando estacionava um ônibus de turistas do sul: qual das mulheres que desembarcavam João assediaria.

Essas passagens reforçam uma questão acertadamente central no livro: o papel da rede de apoio, voluntário ou não, que permitiu a João chegar tão longe em suas atrocidades sexuais.

Também é oportuna a citação que Fibe escolhe para abrir sua obra: "Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros".

O trecho lança um personagem secundário em "O Alienista", conto que Machado de Assis publicou em 1882. Quase um século e meio depois, o figurante vira protagonista numa história de terror para centenas de mulheres que acusam João de ser tudo, menos de Deus.

João de Deus - O Abuso da Fé

  • Preço 49,90 (240 págs)
  • Autoria Cristina Fibe
  • Editora Globo Livros
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