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Famílias serão assentadas em fazendas agroecológicas após resgate de trabalho escravo

Com dois projetos-piloto na Bahia, programa "Vida Pós Resgate" vai reinserir no campo trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão

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Salvador

O vaqueiro Agnaldo Barbosa dos Santos, 54, trabalhou por dez anos sem receber salários em uma fazenda em Santa Cruz Cabrália, sul da Bahia. Chegou na roça em 2009, com a promessa de ganhar R$ 680 mensais. Mas, desde então, recebia apenas uma cesta básica por mês.

Agnaldo foi resgatado em 2019 em uma operação de combate ao trabalho escravo. Recebeu um seguro-desemprego e foi morar em uma casa na periferia de Santa Cruz Cabrália. Agora, terá uma nova possibilidade de voltar à vida no campo, principal desejo dele e dos filhos de 19 e 22 anos.

Trabalhadores da cidade de Aracatu (BA) são resgatados em condições análogas à escravidão em fazenda no interior de São Paulo em julho de 2021
Trabalhadores da cidade de Aracatu (BA) são resgatados em condições análogas à escravidão em fazenda no interior de São Paulo em julho de 2021 - MPT / Divulgação

Parceria entre o MPT (Ministério Público do Trabalho), a UFBA (Universidade Federal da Bahia) e prefeituras, o programa "Vida Pós Resgate" vai trabalhar para reinserir no campo trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão.

O projeto prevê que trabalhadores sejam assentados em fazendas de base agroecológica, modelo que prioriza cultivo orgânico, valoriza a diversidade dos produtos, o trabalho coletivo e o saber local das comunidades rurais.

As fazendas, que serão compartilhadas entre as famílias e geridas por associações de agricultores, serão adquiridas com recursos de indenizações por danos morais coletivos de ações judiciais movidas contra empresas flagradas com trabalhadores em situação análoga à escravidão.

Dados do Ministério do Trabalho apontam que, entre 1995 a junho de 2020, cerca de 55 mil trabalhadores foram resgatados em condições análogas às de escravidão.

Pesquisa feita pela Organização Internacional do Trabalho em 2011 aponta que a maioria dos trabalhadores resgatados no Brasil havia migrado de seu estado de origem. Cerca de 84% deles tinham origem na área rural, de onde haviam migrado há mais de cinco anos.

"Em geral, são pessoas de pequenas cidades que acabam migrando por falta de oportunidade. A maioria não é dona da própria terra e, mesmo quem tem, não possui os meios adequados para produzir", afirma a procuradora Lys Sobral Cardoso, gestora da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT.

Dois projetos-piloto foram desenvolvidos: um para a região cacaueira, no sul da Bahia, e outro para Aracatu, cidade de 13 mil habitantes do sudoeste baiano.

O assentamento em Aracatu deve beneficiar parte de um grupo de 64 pessoas que foram resgatadas julho deste ano trabalhando em condições precárias na colheita do café em uma fazenda em Pedregulho (450 km de São Paulo).

Os trabalhadores foram recrutados em Aracatu em abril e seguiram de ônibus até o interior de São Paulo. Entre eles, estavam doze crianças e adolescentes entre 13 e 17 anos. O proprietário da fazenda combinou de pagá-los ao fim da colheita, que durou dois meses, mas não houve formalização de contrato, nem pagamento de salários.

Além disso, os trabalhadores estavam em instalações impróprias para moradia e havia cobrança pelas passagens para o interior de São Paulo e até pelo uso de equipamentos de proteção individual, o que deixava os empregados em dívida com os patrões.

Essas famílias foram resgatadas e regressaram à Aracatu. Desde então, recebem parcelas do seguro-desemprego. A maioria não conseguiu um trabalho formal após o regresso à terra natal.

Uma das resgatadas, que pediu para não ter o seu nome divulgado, diz que a cidade tem poucas oportunidades de trabalho e é comum que famílias inteiras migrem temporariamente para trabalhar em colheitas no interior de São Paulo.

Ela tem 17 anos e um filho de 2 anos. Diz que as famílias resgatadas estão ansiosas com a possibilidade de trabalhar em uma terra própria.

O projeto-piloto em Aracatu tende a avançar mais rápido. Os trabalhadores terão o apoio da prefeitura, que já assinou termo de cooperação com o MPT para fornecer o apoio de um técnico agrícola para os assentamentos.

A expectativa é que até o início do próximo ano as famílias já estejam assentadas em suas terras e produzindo alimentos.

Parte dos recursos deve vir dos antigos empregadores que recrutaram as famílias para trabalhar em Pedregulho. Os empresários firmaram em outubro um acordo com o MPT no qual devem pagar R$ 250 mil de indenização por danos morais coletivos.

A gênese do projeto "Vida Pós Resgate" foi um termo de cooperação firmado em 2017 entre o MPT e a Faculdade de Economia da UFBA.

O primeiro passo foi a realização de um estudo que traçou um panorama das políticas públicas voltadas para trabalhadores resgatados em condição análoga à escravidão e os seus resultados.

Os estudos apontaram que, em geral, os trabalhadores permaneciam em situação de vulnerabilidade após o resgate e que o acesso à terra era uma das principais demandas das famílias.

Além de receberem seguro-desemprego e cursos de qualificação, as famílias eram atendidas por políticas de assistência social básicas, como programas de distribuição de alimentos. Mas não havia nenhuma política sólida voltada para emancipar financeiramente os resgatados.

Após os estudos preliminares, MPT e UFBA assinaram um novo termo de cooperação para iniciar os primeiros projetos-piloto de assentamentos e garantir um caráter nacional ao projeto.

A Fapex, gestora de projetos da UFBA, será a responsável por gerir os recursos do projeto. A expectativa é que cerca de R$ 1,4 milhão sejam investidos no primeiro projeto-piloto.

"Queremos que o dinheiro dos danos morais coletivos seja revestido para os próprios trabalhadores com a compra de terras, máquinas, implementos, dentre outros", afirma Vitor Filgueiras, professor da Faculdade de Economia da UFBA e um dos idealizadores do projeto.

A ideia é firmar parcerias com prefeituras e governos estaduais para que o avanço do programa não dependa exclusivamente para a UFBA e Ministério Público. Há tratativas em curso com os governos da Bahia e Maranhão.

Além do assentamento em Aracatu, um segundo-projeto piloto está sendo desenvolvido para a região cacaueira, no sul da Bahia, e também deve ganhar forma a partir do início de 2022.

A expectativa é atender a dez famílias de resgatados, inclusive a de Agnaldo Barbosa dos Santos, que vive em Santa Cruz Cabrália.

Desde que foi resgatado em 2019, ele passou a receber ameaças e foi incluído no programa de proteção a vítimas e testemunhas. No ano passado, o muro da casa alugada onde mora foi cravejado de balas e ele, por pouco, não foi atingido.

Ele credita as ameaças ao antigo patrão, que o explorou por dez anos em uma fazenda de criação de gado e produção de eucalipto. Além da falta de salários, o trabalho lhe rendeu problemas de saúde, incluindo dores na coluna com que convive.

No ano passado, Agnaldo conseguiu um trabalho na prefeitura e passou a atuar na coleta de lixo da cidade, o que lhe garante uma renda por mês. Os filhos, com 19 e 22 anos, fazem bicos como ajudantes de pedreiro.

Mas o desejo dos três é retornar à vida no campo: "Meu destino é voltar para a roça. Eu e meus filhos fomos nascidos e criados no campo. Conto as horas para que esse dia chegue".

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