Consulta sobre vacinação de crianças é 'idiotice' e 'absurdo', dizem especialistas

Governo Bolsonaro propõe a iniciativa, apesar de a Anvisa ter aprovado o uso do imunizante

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Brasília e São Paulo

"Idiotice", "procrastinação", "absurdo" e "coisa da idade da pedra". Esses foram alguns termos usados por especialistas em infectologia e saúde pública ao descrever a sugestão do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, de abrir consulta pública para decidir sobre a vacinação contra a Covid-19 de crianças de 5 a 11 anos.

O ministério anunciou a iniciativa após a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovar o imunizante para a faixa etária.

A consulta deveria começar nesta quinta-feira (23) e ir até 2 de janeiro, mas a iniciativa não constava do portal da Saúde até o final da tarde desta quinta.

Ao justificar a medida, Queiroga disse: "Isso não é uma eleição. Isso não é para opinião de grupos de 'zap', como estão falando por aí. Queremos ouvir a sociedade, incluindo especialistas".

Marcelo Queiroga durante evento no auditório do Ministério da Saúde, em Brasília, no último dia 20 - Antonio Molina/Folhapress

Sanitarista, especialista em saúde pública e ex-presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina Neto afirma que não há nenhuma justificativa para fazer essa consulta pública. "É uma idiotice", afirma. "Temos todas as informações do ponto de vista técnico."

Segundo Vecina Neto, a própria comissão técnica de assessoramento do ministério aprovou por unanimidade, em 17 de dezembro. "Ou seja, tem a aprovação da Anvisa e teve a aprovação do órgão do Ministério da Saúde responsável pela incorporação de vacinas", diz.

O ex-presidente da Anvisa faz um paralelo entre a atitude de Queiroga e a do ex-ministro Eduardo Pazuello. "Essa idiotice que o Queiroga está propondo é na linha do 'ele manda, eu obedeço'. O Bolsonaro mandou ele não dar a vacina e ele está obedecendo", afirma.

Para Vecina, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski também falhou ao dar prazo até 5 de janeiro para que o Ministério da Saúde apresentasse uma decisão. "Com essa posição, ele renunciou à prerrogativa do STF de exigir do Executivo uma decisão que protegesse as nossas crianças", diz.

Para William Dib, também ex-presidente da Anvisa , o fato de o STF ter atendido ao pedido do governo não é tão crítico, porque a época de fim de ano já impediria um processo amplo de imunização das crianças.

"5 de janeiro é propício para que inicie a vacinação em massa, a tempo da volta às aulas. Claro que já poderia ter aberto a vacinação, mas não teria como vacinar todas as crianças neste período", disse.

Dib defende que imunizar crianças é essencial para garantir o bom funcionamento das escolas, o que deveria ser prioridade no país. "O problema maior é que as crianças são transmissoras. Ela toma vacina para a professora da escola, a merendeira, a tia, a mãe, o pai não morrer. Não é apenas para a criança não morrer."

Ele lembrou ainda que não há vacinação obrigatória. Portanto, quem quiser pode não imunizar seu filho. Mas poderá encontrar dificuldades em escolas, que muitas vezes exigem a carteirinha de vacinação.

O médico cardiologista classificou ainda a declaração do Queiroga nesta quinta de "risível". O ministro disse que não é preciso decidir sobre a vacinação infantil de forma emergencial, porque "os óbitos em crianças estão absolutamente dentro de um patamar que não implica em decisões emergenciais".

De acordo com dados do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), desde o começo da pandemia até 6 de dezembro deste ano, foram registradas 301 mortes de crianças entre 5 e 11 anos por Covid.

Em 2020, 2.978 crianças tiveram síndrome respiratória aguda grave em decorrência do coronavírus —156 delas morreram. Neste ano, foram registrados 3.185 casos nessa faixa etária, com 145 mortes.

O presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, chamou os 301 óbitos infantis de "estatística macabra". "Entendo que o ministério precisa apresentar à sociedade a justificativa do porquê de nós mantermos inalterada uma estatística macabra", disse ao jornal "O Globo".

Dib também lamentou a iniciativa do ministério de consulta pública, que chamou de "absurda", "estúpida" e "da idade da pedra".

"É um absurdo consulta pública a respeito de decisão da Anvisa. É alguma coisa assim, de antes da idade da pedra, não dá para imaginar uma estupidez tão grande. É como se a Anvisa fosse um órgão estelar, de outro planeta, não é do governo", disse.

"O ministro resolveu fazer política e esqueceu os anos de faculdade. Esqueceu de propósitos e ensinamentos que aprendeu na faculdade, e resolveu ser político", completou.

Na mesma linha, o médico infectologista Hélio Bacha disse que o ministro "está amedrontado e deve ter esquecido o que aprendeu na escola". "Talvez, no futuro, isso seja chamado de crime", completou Bacha, que tem mestrado e doutorado pela Faculdade de Saúde Pública da USP.

A consulta pública, para ele, poderia até ser interessante caso fosse usada para divulgar a importância da vacinação. O problema é que está sendo utilizada de "campanha antivacina", disse.

"Pelo que tenho acompanhado dos atos do ministro, acho que é uma decisão de procrastinação da aplicação tão necessária das vacinas em crianças", diz.

Bacha disse ainda que estudos já mostram que a nova variante ômicron tem participação importante entre novos casos e que a proteção das crianças é fundamental.

Ariel de Castro Alves, advogado e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, também entendeu a proposta do governo de realizar a consulta pública como uma forma de protelar a vacinação ao público em questão.

"A iniciativa é demagógica, oportunista e eleitoreira. Se já existe a autorização da agência reguladora competente, não tem necessidade de consultar o público, que em geral é leigo em questões de ciência e saúde", disse.

Para Alves, a Constituição e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) estão sendo infringidos. "São muito claros sobre o direito à vida e à saúde, e que também crianças e adolescentes devem ser tratados com prioridade e devem receber proteção integral".

Na avaliação do advogado, o Ministério Público Federal deveria pedir ao STF uma abertura de inquérito contra o ministro e o presidente por prevaricação.

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