"Desculpem, tivemos um atraso de mais de uma hora, acho que dona Mary confundiu velório com casamento", disse o ator e humorista Márcio Américo, ao iniciar a cerimônia de despedida de Mary Guimarães Cannito, às 16h do último domingo (20), no Cemitério Memorial Jardim, em Santo André.
Começava assim, no formato de "stand-up comedy", no qual um comediante se apresenta para uma plateia ao vivo, o primeiro velório da seita "Deus É Humor", em homenagem à mãe do cineasta e roteirista Newton Cannito, 48, autor e diretor do espetáculo teatral homônimo.
A dona de casa morreu aos 85 anos de complicações de uma cirurgia no fêmur após sofrer uma queda. Lourdes, 53, a primogênita, acompanhou a via-crúcis materna por uma semana até que finalmente a fratura fosse comprovada e a operação realizada. "Ela morreu dormindo", relata a filha.
Em 2014, Mary se tornou protagonista do documentário "Saúde S.A", quando encarnou uma espécie de Michael Moore dos trópicos.
A exemplo do documentarista norte-americano, ela colocou boné e empunhou megafone no encalço de figuras como o então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e o dono da rede de farmácias Ultrafarma, Sidney Oliveira.
"Eu deixava meu marido na cama e saía para filmar, pensando em melhorar a saúde no país", explicou à Folha, em 2014, sobre as suas andanças, entre abril e setembro de 2013, em meio aos cuidados com o marido, vítima de um AVC, e com a filha, que se tratava de um câncer.
Viúva de um desenhista e projetista que fez carreira na indústria em São Bernardo do Campo, a dona de casa também inspirou o longa "Magal e os Formigas" (2016), dirigido pelo filho.
Fez ponta ao lado do seu ídolo Sidney Magal, que emprestou o nome para a fábula cinematográfica que retrata a trajetória dos Cannito no ABC paulista.
"Mary, quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar, com a mesma alegria das filmagens e dos shows", disse Magal, em vídeo postado pelo fã clube de Mary durante o funeral. "Esteja em paz, com Deus, e seja mais uma cigarra nesse universo", concluiu o cantor.
"Minha mãe era a cigarra que tinha paixão pelo Magal e cantava para alegrar a casa de um operário ranzinza, meu pai, e seus amigos, os formigas do título", explica Newton.
A mãe também foi a primeira formanda do curso Avatar Tropical, que faz parte do movimento estético e político Utopia Brasil, cujo filme será lançado em 21 de abril.
Dona Mary é personagem ainda do livro "Curumim Pajé", pré-lançado no velório, que retrata a infância do cineasta, marcada pela religiosidade sincrética materna.
Uma das lembranças retratadas por Newton é do período em que Mary frequentava os cultos dos Testemunhas de Jeová. Ela desistiu quando soube que iria para o céu sem os filhos, que não seguiam a mesma religião. "Não quero ficar no céu sozinha com esses chatos. Prefiro ficar no inferno com vocês", explicou à mesa para deleite do marido e das crias.
Nascida católica, Mary participava de rituais de ayahuasca a sessões espíritas. Após um transe xamânico, declarou: "Morri e foi bom. Não tinha mais conta para pagar".
Fé e riso estavam em comunhão na espiritualidade da frequentadora assídua das reuniões da "Deus É Humor", quando surpreendia artistas e plateia com suas tiradas. "Deus é normal", definiu ela, em uma roda em que cada um expressava sua visão do Todo-Poderoso.
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