Descrição de chapéu Rio de Janeiro Folhajus

Promotoria do RJ recorre a peritos de SP para tentar esclarecer mortes no Jacarezinho

Laudos de IC paulista ajudam a reconstruir a ação mais letal da Polícia Civil fluminense

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São Paulo

A história da mais letal operação da Polícia Civil fluminense, desencadeada em maio do ano passado no morro do Jacarezinho, que deixou 28 mortos na zona norte do Rio, está sendo reconstruída com a ajuda do trabalho de uma equipe de peritos distante a mais de 400 quilômetros da favela carioca.

A pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro, a cúpula da segurança de São Paulo destinou 13 profissionais do Instituto de Criminalística, de quatro núcleos diferentes (balística, biologia e bioquímica, física e química), que produziram 95 laudos sobre as roupas recolhidas dos corpos das vítimas da intervenção policial.

Foi com a ajuda desse material que a Promotoria requisitou, no último dia 10, o arquivamento de 4 dos 12 inquéritos instaurados para apurar as circunstâncias das mortes. Os promotores ficaram convencidos pelos laudos de que, nesses casos específicos, a versão contada pelos policiais deve ser a verdadeira.

"Ficou comprovado que, naqueles casos, não havia mais de um DNA de sangue humano na mesma roupa. Que não havia mistura de DNA, ou seja, mostra que as pessoas não foram empilhadas. A princípio, isso corrobora a versão dos policiais de que eles atenderam aquelas pessoas feridas, ainda com vida", disse o promotor André Luis Cardoso, coordenador da força-tarefa que investiga as mortes.

Munição de fuzil encontrada por morador após operação policial no Jacarezinho, na zona norte do Rio, que deixou 28 mortes - Tércio Teixeira/Folhapress

Ainda segundo o membro do Ministério Público fluminense, a perícia comprovou que não houve, naquelas situações, disparos realizados a curta distância, os chamados tiros à queima-roupa. "Isso também corrobora a versão deles, de que os tiros foram tomados a distância, em um eventual confronto com os policiais. Isso foi graças a trabalho pericial de São Paulo."

Por outro lado, o resultado da perícia reforçou as suspeitas da Promotoria de ter havido um homicídio doloso (intencional) na ação que levou à morte de Omar Pereira da Silva, supostamente morto quando estava encurralado no quarto de uma criança, desarmado e já ferido.

Um desses indícios, conforme o Ministério Público, foi a forte "marca de arraste" nas roupas da vítima. Isso indicaria que a morte ocorreu em um ponto, e o corpo foi arrastado para outro, provocando esgarçamento na camiseta de Silva –ele teria sido puxado pela gola quando já estava sem vida.

Outros sete inquéritos continuam em tramitação e também devem usar o material produzido pela Polícia Científica paulista. Entre eles está o que investiga a morte do policial André Frias, assassinado na operação.

Mulher mostra onde suspeito de tráfico de drogas foi morto em suposto confronto com policiais civis do Rio nos morros do Jacarezinho - Mauro Pimentel - 6.mai.21/AFP

De acordo com Cardoso, uma série de motivos levaram à formulação do pedido aos peritos paulistas, mas, principalmente, a falta de independência da perícia fluminense, que ainda é vinculada à Polícia Civil.

Essa ligação contaria, segundo o promotor, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil no caso favela Nova Brasília, também do Rio, por 26 mortes ocorridas durante intervenções policiais em 1994 e 1995. A sentença fala da necessidade de uma perícia independente.

"A perícia tem que ser um órgão extremamente independente. Por isso, resolvemos realizar as análises no IC de São Paulo", disse Cardoso.

Embora ainda mantenha ligações com a Polícia Civil, como terem a mesma corregedoria, a Polícia Técnico-Científica de São Paulo é um órgão autônomo, ligado diretamente ao secretário de segurança desde 1998.

O promotor fluminense aponta como exemplo dos problemas decorrentes da falta de independência o laudo complementar de local produzido pela perícia do Rio, logo após a Promotoria apresentar denúncia contra dois policiais civis suspeitos de participação na morte de Omar Pereira da Silva.

"Foi uma perícia malfeita, às pressas, apenas para tentar destruir a versão da denúncia do Ministério Público, só. O que me pareceu foi um inquérito defensivo, para defender a versão dos policiais. O inquérito precisa apurar como o fato aconteceu –por isso a importância da perícia independente", disse.

De acordo com o diretor-geral do IC (Instituto de Criminalística) de São Paulo, Samuel Alves de Melo Neto, 55, o material chegou do Rio em setembro do ano passado e o resultado foi enviado à Promotoria no final de janeiro.

"Foi autorizado [pelo secretário], desde que não encaminhássemos ninguém para lá, que o material viesse para cá. Não poderíamos enviar o nosso pessoal para lá, para fazer perícia ou uma reconstituição", disse o perito.

Essa foi, ainda segundo ele, a segunda vez que o IC de São Paulo apoia o Ministério Público fluminense em investigações criminais de relevo.

A primeira foi em dezembro de 2020 nas investigações do caso do menino João Pedro, 14, assassinado com um tiro de fuzil, dentro de casa do tio, em São Gonçalo (RJ), em operação da Polícia Civil e Federal para prisão de traficantes de drogas.

Na ocasião, a perícia de São Paulo analisou as armas usadas na operação, como fuzis e pistolas, assim como estojos e o projétil que atingiu o adolescente.

Esse mesmo material havia sido analisado pela perícia do Rio, mas o resultado foi inclusivo para definir a arma usado no disparo letal. A Promotoria fluminense pediu, então, apoio da perícia paulista, como uma espécie de contraperícia.

"O resultado em si foi até o mesmo, deu inclusivo. Mas o caminho que as perícias trilharam, os detalhes, a riqueza de informação, outros aspectos que foram abordados, o grau de informação que a segunda perícia nos trouxe, foram muito interessantes para nós", disse o promotor Paulo Roberto Mello Cunha, da 2ª Promotoria, junto à Auditoria Militar do Rio.

"A gente não tem nenhum motivo palpável, nenhum fato concreto, para duvidar da seriedade e da imparcialidade do ICCE [Instituto de Criminalística Carlos Éboli]. A questão não é essa. É uma questão de princípio para uma investigação independente. Não faz sentido eu usar [na investigação] o mesmo órgão que estou controlando [investigando]", acrescentou Cunha.

perito analisa provas no computador
Perito faz análise em provas no Instituto de Criminalística de São Paulo - Divulgação/Polícia Técnico-Científica

O Rio de Janeiro é um dos oito estados onde a perícia ainda é vinculada à Polícia Civil, segundo o presidente da ABC (Associação Brasileira de Criminalística), Leandro Cerqueira Lima. O estado fluminense tem, ainda, uma situação particular.

"Quando o perito vai lotado para a delegacia de homicídios, ele fica subordinado ao delegado. Não fica mais subordinado ao diretor da Polícia Científica. Isso é muito ruim. Mesmo nos outros em que eles trabalham juntos, o perito não fica subordinado ao delegado. Quem tem essa formatação somente o Rio e o Ceará", disse o presidente da associação dos peritos.

Lima aponta outro problema de policiais civis e peritos de trabalharem juntos, nas mesmas equipes. "Você acaba gerando amizade. Você cria uma equipe coesa, que é bom para investigação, mas para a perícia às vezes não é. Porque se a investigação está caminhando para um lado, mas a perícia para o outro, você pode ter interferência no julgamento do perito", disse.

Procurada, a Polícia Civil do Rio informou ter 212 anos de existência e "nunca teve seus laudos contestados". "Pelo contrário, são sempre utilizados pelo Ministério Público e tem credibilidade perante à Justiça."

Ainda sobre a elaboração de laudo pós-denúncia, a polícia disse a instituição trabalha pela verdade real dos fatos, e a melhor técnica entende que, sempre que uma testemunha prestar depoimento nos autos, sua versão deve ser confrontada com as provas técnicas. No caso concreto, a denúncia foi feita ainda com o inquérito na delegacia e antes do relatório final.

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