Investigações da chacina de Pau D'Arco (PA) foram encerradas sem apontar mandantes

Dois policiais civis e 14 militares foram indiciados pelo crime como executores e aguardam julgamento por júri popular, mas, apesar de réus, continuam soltos e em atividade

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Diego Junqueira
Repórter Brasil

Duas investigações que poderiam revelar os mandantes do maior massacre no campo dos últimos 25 anos —o caso Pau D’Arco— foram encerradas sem apontar os responsáveis pelo crime. É o que revelam dois inquéritos, que correm em sigilo, mas foram obtidos pela Repórter Brasil.

Na chacina, que completa cinco anos nesta terça-feira (24), policiais executaram dez trabalhadores sem-terra que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco, no Pará. Dois policiais civis e 14 militares foram indiciados pelo crime como executores e aguardam julgamento por júri popular, mas, apesar de réus, continuam soltos e em atividade.

Uma das investigações a que a reportagem teve acesso foi a da Polícia Civil do Pará, que apurava o assassinato da principal testemunha do massacre, Fernando Araújo dos Santos, que relatava sofrer ameaças dos acusados pelo massacre e foi morto em janeiro de 2021. O inquérito sobre sua morte foi concluído em dezembro sem sequer ouvir os policiais que o teriam ameaçado. A polícia descartou relação entre a execução do sem-terra e a chacina.

A execução de dez trabalhadores rurais em Pau D'Arco (PA), em 24 de maio de 2017, foi a maior chacina no campo desde o massacre de Eldorados dos Carajás (PA), em 1996
A execução de dez trabalhadores rurais em Pau D'Arco (PA), em 24 de maio de 2017, foi a maior chacina no campo desde o massacre de Eldorados dos Carajás (PA), em 1996 - Repórter Brasil

O segundo inquérito, sob responsabilidade da Polícia Federal, investigava os mandantes da chacina e foi encerrado, também no ano passado, sem apontar os culpados nem fazer indiciamentos.

"É preocupante que a investigação do massacre tenha se restringido aos executores do crime, sendo que havia condições materiais de as investigações avançarem e levarem aos mandantes", diz a pesquisadora Carla Benitez Martins, da Unilab. Ela faz parte de um grupo de mais de 40 pesquisadores que estão analisando os 51 massacres de trabalhadores do campo desde 1985.

No caso da chacina de Pau D'Arco, os pesquisadores concluíram não haver provas que sustentem a tese de confronto entre policiais e sem-terra, alegada pelos acusados, mas sim de uma ação coordenada e planejada com antecedência por um grupo de extermínio. Um dos fatos marcantes do processo foi a perícia dos corpos das vítimas, que estavam agachadas ou cobrindo o rosto e sem resíduos de pólvora nas mãos, o que descarta o confronto. Sem avançar nesses pontos, segundo os pesquisadores, o resultado é a impunidade.

‘Sem testemunha, sem julgamento’

Os policiais acusados pela chacina de Pau D’Arco alegam que atuaram em legítima defesa. Além do depoimento de Fernando dos Santos e de outros sobreviventes, o indiciamento foi baseado também na delação premiada de dois policiais. No local do crime, foram encontrados indícios de execução e tortura dos camponeses.

Santos era quem tinha na memória detalhes da chacina. Ele narrava como, em 24 de maio de 2017, a polícia rendeu, humilhou e torturou seus colegas antes de executá-los com tiros à queima-roupa. Em janeiro do ano passado, ele foi morto na porta de sua casa com um tiro na nuca. Apesar das ameaças que vinha relatando sofrer dos réus, os policiais nem sequer foram ouvidos no inquérito sobre sua execução.

Principal testemunha do massacre ocorrido em maio de 2017, Fernando Araújo dos Santos foi executado na porta de casa no ano passado, após relatar ameaças dos acusados pela chacina
Principal testemunha do massacre ocorrido em maio de 2017, Fernando Araújo dos Santos foi executado na porta de casa no ano passado após relatar ameaças dos acusados pela chacina - Lunaé Parracho/Repórter Brasil

"Isso é gravíssimo. Por que essa linha de investigação [sobre a morte da testemunha] foi abandonada?", questiona Deborah Duprat, ex-subprocuradora-geral da República, que acompanhou a investigação do caso quando estava no Ministério Público Federal.

Semanas antes de ser morto, Santos contou sobre as ameaças que recebera em entrevista à Repórter Brasil. "Os policiais estão pensando em vir aqui dar um jeito de não haver mais testemunha antes do julgamento. Não há testemunha, não há julgamento", disse ele, que chegou a citar o nome de um dos policiais. Uma das pessoas que levaram o recado teria dito que quem o estava ameaçando "era covarde e faz [mata] mesmo".

Esse depoimento foi entregue à Polícia Civil, mas nem sequer foi incluído no relatório final do inquérito. Segundo o documento, a única diligência foi a análise do celular da vítima, que não resultou em "nenhuma informação que interesse à investigação".

Contudo, horas antes de ser assassinado, Santos trocou mensagens com a equipe da Repórter Brasil, informando que deixaria o assentamento em razão das ameaças recebidas. Horas depois, foi executado.

A reportagem perguntou ao delegado Antônio Mororó Júnior, da Delegacia Especial de Conflitos Agrários de Redenção (PA), responsável pelo inquérito, se os policiais e as pessoas citadas pela vítima foram procuradas durante a investigação, e a autoridade informou que "diligências foram realizadas" e nada foi comprovado, mas não detalhou as ações.

"A gente não pode afirmar que as ameaças não ocorreram. Mas em momento algum a prova testemunhal ou documental e a análise do celular da vítima demonstraram que as ameaças tenham ocorrido. Fizemos um levantamento aprofundado, diligências presenciais acompanhadas por mim, e não há indícios [de envolvimento dos policiais]", disse o delegado.

Inquérito questionado

Apesar de não detalhar as investigações sobre os policiais que Santos acusava, a Polícia Civil e o Ministério Público do Estado do Pará prenderam uma pessoa pelo seu assassinato. A tese é que o homicídio aconteceu por uma tentativa de roubo (latrocínio). No entanto, no dia do crime, nada foi levado da casa da vítima. O preso nega.

"Não aparece nada no inquérito que aponte para motivação patrimonial", diz a advogada Andréia Silvério, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha o caso.

Além do depoimento em vídeo, entregue pela equipe da Repórter Brasil, Silvério também enviou à Polícia Civil gravações e relatos das ameaças a Santos. "A gente acreditava que as ameaças seriam uma das linhas de investigação, já que o Fernando citava nomes. Mas tudo foi ignorado", diz. "Infelizmente há chances de ser mais um caso de impunidade."

Para Duprat, devido aos indícios de envolvimento da polícia, a responsabilidade pela investigação deveria ser do Ministério Público.

O promotor Luiz da Silva Souza, do Ministério Público do Pará, disse que "não vieram elementos que indicassem a participação dos envolvidos no ‘Caso de Pau D’Arco’ no homicídio de Fernando" e que "restou demonstrada a incontestável autoria" do preso. Após o questionamento da reportagem, o promotor decidiu abrir uma investigação própria sobre o assassinato para "total elucidação dos fatos".

Investigações da PF apontaram dois policiais civis e 14 militares como executores da chacina
Investigações da PF apontaram dois policiais civis e 14 militares como executores da chacina, mas não indicaram quem seriam os mandantes das execuções - Lunaé Parracho/Repórter Brasil

E os mandantes?

A investigação da PF, sobre quem encomendou a chacina, também é criticada pela advogada Andréia Silvério. "Desde o início, [encontrar os mandantes] esteve em segundo plano, apesar dos indícios de envolvimento de fazendeiros como financiadores das execuções". A suspeita de uma possível articulação entre a polícia e empresas de segurança chegou a ser levantada no inquérito que resultou no indiciamento dos policiais, mas essa linha de investigação foi abandonada no inquérito dos mandantes, segundo outro advogado, que prefere não ser identificado.

A investigação dos mandantes se concentrou em buscar laços entre os supostos donos da fazenda ocupada pelos sem-terra (família Babinski) e os policiais que participaram da ação, o que não se confirmou. A Superintendência da Polícia Federal no Pará e a família Babinski foram procuradas, mas não responderam.

"A ausência de punição incrementa a violência, a morte e crimes como esse. É muito importante a vigilância da sociedade, afinal, trata-se de evidenciar que se morre muito no campo e por conta das forças policiais", afirma Duprat.

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