Em programa do governo de SP, morador consegue casa, mas perde renda

Foco de política de remoção, maior conjunto de favelas sobre palafitas do país tem salões de cabeleireiro, pesca e terreiros de umbanda

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Dique Vila Gilda, a maior favela sobre palafitas do Brasil, à beira do rio Bugre, em Santos, litoral de São Paulo Bruno Santos/Folhapress

Santos

Salões de beleza, pequenos mercados e até terreiros de umbanda. Moradores do Dique Vila Gilda, a maior favela sobre palafitas do país, querem saber o que vai acontecer com seus pequenos negócios e investimentos quando o conjunto à beira do rio Bugre, em Santos (litoral paulista), for demolido.

Não existe um prazo para que as demolições ocorram, mas elas foram divulgada como uma vultosa medida que o então governador João Doria (PSDB) lançou no ano passado, com verba de R$ 600 milhões, e que foi herdada pelo também tucano Rodrigo Garcia.

O programa, batizado de Vida Digna, promete a remoção de pelo menos parte do conjunto nos próximos 24 meses, assim como deve ocorrer em outras favelas também erguidas sobre palafita de toda a Baixada Santista, em projeto de recuperação da área de mangue onde moradores se instalaram há décadas.

Das cerca de 3.600 unidades habitacionais previstas no programa, 1.510 estão em obra e são prometidas ainda para 2023 e 2024. Mas é um número ainda baixo em relação às cerca de 20 mil famílias que ocupam todas as favelas que o programa inclui.

"Não vamos acabar com as palafitas nessa primeira etapa, mas se a gente esperar ter 20 mil apartamentos prontos para atender 20 mil famílias, com recurso do estado, a gente não resolve o problema nunca", diz o secretário de Habitação, do Estado de São Paulo, Flavio Amary. Só no Vila Gilda, são 6.000 famílias.

No caso da favela santista, a mudança parece mesmo um sonho distante. Um ano após o lançamento do projeto, os moradores não foram ouvidos e não houve nenhum cadastramento.

Lucileia Siqueira, uma das lideranças locais e membro do Conselho Municipal de Habitação de Santos, diz que "a imprensa fica sabendo antes da comunidade [dos projetos]". "As pessoas estão vivendo na miséria, o poder público anuncia e promete moradias, mas as coisas permanecem sem solução", diz.

"É preciso compreender a economia das pessoas que moram aqui e ajudar a pessoa a conquistar autonomia para pagar as contas futuras", diz. A Secretaria de Habitação afirma que escolheu locais que facilitam o acesso da população à região portuária, onde há concentração de emprego.

A previsão é que os moradores sejam distribuídos em três conjuntos habitacionais de Santos, com até uma hora e 20 minutos de distância a pé da favela —ou 16 minutos de carro.

Daiana Alves dos Santos, 37, mora em um barraco de tapumes erguido sobre o mangue junto com mais nove familiares e está cheia de dúvidas sobre o programa.

Na parte da frente da residência ela fez seu terreiro de umbanda, frequentado hoje por 30 pessoas da comunidade. "Não daria para manter meu terreiro nesses prédios", afirma. "Também seria necessário, a meu ver, manter a comunidade unida", cobra, referindo-se às cerimônias que realiza há quatro anos.

Daiana acha que o projeto do governo tem falhas que alimentam um ciclo antigo promovido por outros projetos habitacionais. "Estão dando apartamentos para pessoas que não têm condições de pagar suas contas. A pessoa vai lá, faz um acordo, assina contrato, às vezes paga uma conta no começo, depois perde emprego e volta para cá, porque o custo de vida aqui é muito mais baixo", diz.

A política de financiamento de imóveis da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano paulista) estabelece financiamento com prazo de 30 anos de vigência para famílias com renda de um a cinco salários mínimos e comprometimento de 20% da renda da família para pagamento das prestações.

A transferência da economia das favelas "é um dilema no país inteiro", diz o secretário de Habitação. "Alguns casos não têm jeito. Como você vai deixar um mercadinho que está numa área irregular? Você não vai fazer um outro mercadinho, aqui é uma secretaria que cuida da habitação", afirma.

Para Amary, o programa impõe-se como urgência, pois os moradores do Vila Gilda estão sob risco de doenças, incêndios e desabamento de estruturas. Além disso, a favela está em uma área de proteção ambiental, onde nada pode ser construído.

A Folha visitou casas que estão prestes a cair. Em uma delas, vive o segurança Julio Silva da Paz, 41, que tem o piso declinado e partes que parecem prestes a se desprender. "Se continuar afundando, vai desabar", diz. Paz pretende reconstruir a estrutura com as próprias mãos e ajuda de amigos.

Para Renato Góes, advogado e consultor em regularização fundiária, as políticas habitacionais replicam os mesmos erros históricos. "O poder público fornece casa e não enfrenta esse mesmo problema: na hora que você pega toda essa comunidade do Vila Gilda e remove para outra extremidade da cidade, para um núcleo que só tem casinhas, tudo igual, você gera muitos problemas, não só para a população mas também para a cidade", explica.

A vendedora Dinalva de Paula, 65, mantém junto com seu marido uma vendinha no mesmo barraco que lhe serve de residência. Ela conta que a casa pegou fogo em 2015 –muitos outros moradores reportam incêndios, sempre em datas diferentes. O faturamento de seu negócio, cerca de R$ 600 que agora ela teme perder, é usado para complementar o auxílio que recebe do governo federal.

Giovane Ferreira Barros da Silva, 38, que faz bicos lavando porões de navios, mora há 38 anos na região e complementa sua renda com a pesca realizada no próprio rio Bugre.

"Aqui sai robalo e, agora, no frio, está na época das tainhas." Ele vende um saco de filés de peixe por R$ 20 e também se alimenta com sua própria pesca. Giovane lucra, ainda, construindo as casas de palafita. Diz que já fez mais de 30, sendo que cada uma leva 20 dias para ser erguida.

O pescador e filho de pescador aponta, da janela de sua casa, para barracos que viu desabar dentro do rio e, mais adiante, aquele que considera ser o melhor dos barracos que já construiu. "O rapaz gastou R$ 22 mil", diz. Parte desse dinheiro foi para a mão de obra. "A vida aqui é trabalhosa, nem todo dia tem água para o banho e para o banheiro. E luz, se duas pessoas usam junto o chuveiro, ela cai", descreve.

A cabeleireira Angela Cabral, 39, montou seu salão no Vila Gilda há cinco anos. Ela não sabe estimar quanto foi o investimento total no negócio —"meu salão foi crescendo aos poucos"—, mas diz que ainda está pagando as parcelas de uma cadeira de R$ 1.000.

A cabeleireira cobra R$ 20 pelo corte de cabelo. Antes, também fazia faxina, mas perdeu o emprego durante a pandemia. O trabalho na informalidade, segundo ela e todos os outros entrevistados desta reportagem, tornou-se pilar das famílias no governo Bolsonaro e nos anos de pandemia.

Dessa forma, o anúncio da remoção do Vila Gilda, bem como de todas as favelas de palafita vizinhas, deixa a população receosa. "Eles não vêm aqui, não têm diálogo, a gente não sabe o que vai acontecer", diz Anastácia de Oliveira Santos, que mora há quatro anos com um filho autista.

Remoções atingiram 6.000 famílias na pandemia

Na região metropolitana de São Paulo, entre março de 2018 e abril de 2020, houve remoção de 23.268 famílias de ocupações irregulares. O número caiu nos anos de pandemia por causa de decretos e liminares que limitaram as ações de despejo no país. Mas não pararam. Entre abril de 2020 e março de 2022, 6.238 famílias foram retiradas.

Os números são do Observatório das Remoções, entidade ligada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O estudo também informa que os objetivos das remoções têm origens e naturezas diversas. Os principais fatores são conflitos de posse, construções em áreas de risco e retirada para obras públicas.

Em ao menos cinco casos desde 2020, a remoção de moradores incluiu o uso de bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e spray de pimenta pela polícia, ainda segundo a pesquisa. Em 18 casos, houve uso de escavadeiras. Em dois casos, o imóvel foi lacrado e em um caso houve emprego de ameaça com arma de fogo.

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