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Michelle Bolsonaro ecoa intolerância de evangélicos ao repostar Lula em ritual do candomblé

Líderes como Edir Macedo investem há décadas no desprezo por crenças afrobrasileiras

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São Paulo

Ao compartilhar um vídeo que associa candomblé a trevas, a evangélica Michelle Bolsonaro ajudou a dilatar um preconceito religioso que bate ponto em boa parte das igrejas evangélicas.

A primeira-dama usou sua conta no Instagram para repostar uma publicação que afirma que Lula (PT) "entregou sua alma para vencer essa eleição". Acompanha o texto uma gravação do ex-presidente tomando um banho de pipoca dado por representantes de um terreiro candomblecista em Salvador. O ritual simboliza uma proteção espiritual para crenças como umbanda e candomblé.

Michelle deu sua legenda própria para o vídeo, inicialmente postado pela vereadora Sonaira Fernandes (Republicanos-SP). "Isso pode, né! Eu falar de Deus, não!", escreveu a esposa do presidente Jair Bolsonaro, que tem em Lula seu maior antagonista eleitoral.

Imagem mostra story em que Michelle Bolsonaro questiona participação de Lula em encontros com lideranças de religiões de matriz africana - @michellebolsonaro no Instagram

A parlamentar ecoada pela primeira-dama havia dito na postagem inicial: "Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas".

Pulula em cultos o desprezo por crenças de berço africano. Encorajados por seus pastores, muitos evangélicos creem que adeptos dessas religiões cultuam falsos deuses. Daí concluírem que entidades como preto-velho e erê (espírito infantil), da umbanda, ou os orixás do candomblé são manifestações demoníacas.

O bispo Edir Macedo colaborou para insuflar esse sentimento. É dele "Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?", best-seller que chegou a ser banido, após o Ministério Público ver ali uma incitação à intolerância religiosa. Um desembargador, em 2005, proibiu a circulação do livro, veto que por fim caiu. A obra até hoje é reeditada pela editora da Universal do Reino de Deus, a igreja do bispo.

Nela, Macedo sintetiza a zanga evangélica em capítulos como "Macumba pega?" e "Poder contra os exus e todos os demônios". Ele abre o livro dizendo que "espíritos malignos sem corpos" anseiam por um canal com este mundo, daí baixarem em nós, humanos.

Que os verdadeiros cristãos, contudo, não se enganem. "Se você, meu amigo leitor, crê em Deus e em Jesus Cristo e pratica qualquer forma de consulta aos mortos ou adoração a ‘deuses’ com nomes de orixás, caboclos, pretos-velhos e guias, [...] atenda à voz de Deus e nunca mais pratique essas coisas."

Esse ideário tem lastro em espaços evangélicos. Os exemplos por vezes parecem banais. Em 2020, o apóstolo Valdemiro Santiago, por sinal um dissidente da Universal, atribuiu a um tal de "exu corona" o atraso no aluguel de templos de sua igreja, a Mundial do Poder de Deus.

Em 2022, o rompante de intolerância partiu do pastor Felippe Valadão, da Igreja Batista Lagoinha, a mesma que vem recepcionando o clã Bolsonaro em seus púlpitos. Em evento num município fluminense, ele pediu que o público se preparasse "para ver muito centro de umbanda sendo fechado na cidade".

"Avisa aí pra esses endemoniados de Itaboraí, o tempo da bagunça espiritual acabou, meu filho! A igreja está na rua, a igreja está de pé!", afirmou em maio. "Eu declaro, vem um tempo aí, ó, Deus vai começar a salvar esses pais de santo que tem aqui na cidade."​

Não se trata apenas de uma birra teológica. Quando começaram a atacar essa linha de fé, ainda nos anos 1980, líderes como Macedo estavam de olho também numa disputa pelo mercado dos fiéis que sobravam para as religiões "nanicas". O país ainda era quase que todo católico então, e rivalizar com seguidores de crenças de matriz africana parecia mais plausível do que bater de frente com a poderosa Igreja Católica.

Esse jogo mudou rápido, e o apetite do evangelicalismo nacional já abocanhou larga fatia dos outrora seguidores do Vaticano, que caíram para cerca de metade da nação. Hoje, evangélicos são 1 em cada 4 brasileiros, e candomblé e umbanda representam, cada um, 1% da população, segundo as últimas pesquisas Datafolha.

Acredita-se, porém, que a porção de brasileiros que frequenta terreiros seja bem maior, pois muitos veriam estas como crenças secundárias. Como a pessoa que se declara católica, mas vez ou outra consulta um pai de santo e coloca uma oferenda para um orixá numa encruzilhada.

Tampouco é recente a estratégia de se contrapor aos "endemoniados" para marcar posição no tablado eleitoral, como a vereadora Sonaira fez com respaldo de Michelle.

Já em 1994, ano que alçaria o tucano FHC à Presidência, o jornal da Universal colocou na capa uma foto do petista que hoje desafia Bolsonaro. A manchete, em letras vermelhas, dizia em tom alarmista: "Lula apela para o candomblé". Ele posava ao lado de uma mãe de santo.

Ataques cometidos por traficantes evangelizados contra terreiros são outro efeito colateral da repulsa fomentada contra umbandistas, candomblecistas e fés irmãs. Não é correto dizer que a comunidade evangélica endossa esse tipo de agressão. A ideia é muito mais converter do que machucar quem ela acha que se aliou "às trevas".

Mas palavras também provocam estragos. A primeira-dama, um farol para milhões de brasileiros, primeiro disse que o Palácio do Planalto antes era "consagrado a demônios", e agora, sob guarda do marido, é "consagrado ao Senhor". Na mesma semana, endossou o vídeo que zomba da participação de Lula num ritual do candomblé.

Ela própria já se colocou como vítima de intolerantes, quando foi achincalhada por falar em línguas (visto como um dom por pentecostais) ao celebrar a ida de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal.

Gestos de quem está na cabeceira do poder podem desencadear reações violentas na ponta. Deus no descontrole.

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