Descrição de chapéu Vida Pública

Após uma década de dependência química e prisão, Desirée se refaz na gastronomia

Ela entrou em programa público de inclusão oferecido pelo Mackenzie em parceria com o governo de SP

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São Paulo

Por mais de uma década, Desirée Mendes, 44, foi protagonista de um roteiro repleto de tragédias pessoais. Foi dependente química, residente na cracolândia e presa por tráfico —teve sua história acompanhada pela Folha. Até 2012, ela mesma não acreditava que poderia dar a volta por cima.

Nos últimos dez anos, porém, Desirée conseguiu se reinventar. Com uma iniciativa pública de apoio a egressas do sistema penitenciário, conseguiu formação superior em gastronomia e está trabalhando com pâtisserie.

Ela é uma das graduadas pelo programa de Inclusão Social de Residentes do Sistema Carcerário no Ensino Superior da universidade Mackenzie, feito em parceria com a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) do governo de São Paulo e com a Funap (Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel).

"Foi uma experiência única. Me vi num ambiente completamente acolhedor. Não consigo mensurar o quanto foi importante, como ser humano, como profissional", disse Desirée, que se formou no final do ano passado.

Imagem colorida mostra Desirée, do tórax para cima, segurando um batedor de batedeira em direção à câmera, em um fundo de parede amarela; ela está com o cabelo preso, usa uma blusa branca com detalhe vermelho no capuz
Desirée Mendes, 44, segura a peça de uma batedeira; ela se formou em gastronomia por meio do programa de Inclusão Social de Residentes do Sistema Carcerário no Ensino Superior da universidade Mackenzie - Karime Xavier/Folhapress

Hoje ela cumpre pena no regime aberto e ainda tem 2.440 horas para prestar serviços à comunidade, além de pagar uma multa, que ela conseguiu parcelar. Atualmente, ela trabalha por conta própria fazendo encomendas para uma carta de clientes que formou nos últimos anos.

"A gente cria sonhos, já estou numa luta há quase 11 anos refazendo a minha vida. A realidade é que dificilmente se encontra uma porta aberta. Ou junto vem o passado e as portas se fecham ou certas coisas não cabem."

O programa teve início em 2019, com 15 vagas. No ano seguinte, foram selecionadas mais dez detentas do regime semiaberto. Neste ano, entraram outras 16 detentas. Descartando as formadas e as que foram desligadas, hoje a universidade conta com 25 alunas no projeto.

A ideia do programa surgiu após visita acadêmica de docentes da universidade Mackenzie ao Instituto Politécnico da Guarda, de Portugal, onde a universidade tem uma parceria em um programa de mestrado e doutorado.

A universidade passou a trabalhar a ideia em seu plano de desenvolvimento institucional, com professores de direito. "Fomos estudar essa questão de reinclusão social. A gente escreveu um projeto técnico sobre isso, que foi a questão direta do resgate da cidadania", diz Ana Lúcia Vasconcelos, coordenadora geral do projeto.

A coordenação procurou a Funap, entidade ligada à SAP, que promove a reintegração social da pessoa privada de liberdade, em busca de dados sobre os presos no estado e também formar a parceria para a elaboração do projeto.

Segundo a coordenadora da universidade, os dados mostraram que o curso deveria ser voltado às mulheres, que possuem o ensino médio completo mais que os homens, que entram mais cedo no mundo do crime e acabam interrompendo os estudos.

Imagem colorida mostra uma sala de aula, dividida em cinco carteiras com alunas para cada lado; à frente, entre as duas filas de carteiras, um professor segura um papel com as duas mãos e fala com as alunas; ele tem cabelo branco e usa um terno escuro, gravata e camisa branca.
Alunas do programa de Inclusão Social de Residentes do Sistema Carcerário no Ensino Superior acompanham palestra no CPP do Butantã, na zona oeste de São Paulo - Ana Paula Igual - 15.mar.19/Divulgação/Funap

Para Karine Vieira, presidente do Instituto Responsa, que trabalha com a inserção de egressos no mercado de trabalho, a mulher egressa se empenha mais na educação. "Na maioria das vezes, ela pretende deixar um legado de perspectivas para os filhos ou crescer de outra maneira, longe da criminalidade."

As aulas do programa ocorrem dentro da penitenciária. As detentas do regime semiaberto fazem aula por meio do EAD (ensino a distância) dentro do presídio de segunda a quinta, em uma estrutura montada pela Funap, com internet e mobiliário escolar.

Existe uma plataforma moodle —uma sala virtual para acompanhamento de aulas pela internet— instalada no presídio, com autorização da SAP. Às sextas, elas saem pela manhã e vão para a universidade Mackenzie, onde acompanham a aula presencial.

Quando ocorre uma progressão de pena ou a detenta recebe liberdade, ela passa a ser uma aluna normal dentro da universidade, seguindo com a bolsa gratuita do programa.

"O curso é o mesmo e a gente acompanha mensalmente as entregas de atividades. Se elas tiverem qualquer problema, temos psicólogos pedagogos que fazem outro tratamento com elas", diz a coordenadora do a universidade.

O projeto começou com as presas do Centro de Progressão Penitenciário Feminino Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira, no Butantã. Durante esse processo, o local entrou em reforma e as alunas foram transferidas para a penitenciária de São Miguel Paulista, na zona leste, para continuarem o curso.

"A Funap atua sendo uma parceira da SAP e da universidade Mackenzie, proporcionando e apoiando a infraestrutura na unidade prisional, com vale-transporte e vale-alimentação para essas alunas que se deslocam da unidade prisional até a universidade", diz Marcos de Godoy, Diretor de Atendimento e Promoção Humana da Funap.

"É um projeto que procura desde o início trazer essa oportunidade de acolhimento, que elas se sintam parte do corpo acadêmico", afirma.

O tempo de duração do curso —são sete opções, como marketing e gestão de rh—, de dois anos, foi pensado para tentar diminuir o risco de evasão. De 2019 até o momento, 16 mulheres deixaram o programa, por desistência, regressão do regime ou baixo desempenho.

Para combater a evasão, a parceria também oferece apoio psicológico para as alunas. Segundo a coordenadora, são cerca de 50 pessoas da universidade envolvidas no projeto.

Para Karine Vieira, apesar de a lei de execução penal determinar que é direito da pessoa privada de sua liberdade a educação, o acesso nas penitenciárias é escasso e as vagas são inferiores ao número de pessoas encarceradas no país.

"Além disso, precisamos introduzir nessas pessoas o interesse pela educação, tendo em vista que o contexto de vulnerabilidade faz com que muitos não enxerguem a necessidade e as possibilidades geradas através da educação formal. É preciso encontrar meios para efetivar as políticas existentes."

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