Descrição de chapéu Dias Melhores alimentação

Chef autodidata forma cozinheiros, gera renda e alimenta a quebrada

Edson Leite, fundador da Gastronomia Periférica, foi um dos finalistas do Prêmio Empreendedor Social 2022 na categoria Soluções Comunitárias

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Edson Leite saiu do Jardim São Luiz, em SP, para morar em Portugal, onde aprendeu a cozinhar; na volta criou uma escola de gastronomia que forma cozinheiros nas quebradas

Edson Leite saiu do Jardim São Luiz, em SP, para morar em Portugal, onde aprendeu a cozinhar; na volta criou uma escola de gastronomia que forma cozinheiros nas quebradas Renato Stockler/Folhapress

Jeff Ares
São Paulo

É manhã no Jardim Lapenna, zona leste de São Paulo. O reggae do caminhão do gás anuncia a esperança de um dia melhor —no país que, segundo a FAO, Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, voltou ao Mapa da Fome, conforme relatório de 2022.

"Bagulho parece anos 90. Os caras estão roubando para comer. O clima tá tenso na quebrada." Quem afirma é Edson Leite, 37. No boné, o chef carrega a palavra FAVELA, assim, bordada em letras garrafais. É a sua missão. "Preciso capacitar as pessoas. E alimentá-las."

Edson Leite, fundador da Gastronomia Periférica, negócio social que forma cozinheiros nas quebradas
Edson Leite, fundador da Gastronomia Periférica, negócio social que forma cozinheiros nas quebradas - Renato Stockler/Folhapress

Lapenna abriga uma das cozinhas parceiras da Gastronomia Periférica, negócio social que Edson fundou em 2012, ao lado da psicóloga Adélia Rodrigues.

A receita: transformação social por meio da gastronomia e da educação. Ali e em cozinhas da Grande SP, são oferecidas gratuitamente formações profissionais e de empreendedorismo a pessoas periféricas, a maioria mulheres pretas.

A escola da Gastronomia Periférica capacitou 688 alunos, que, quando não são contratados nas unidades da GP, atuam nas muitas ações, que vão do serviço de catering, que chegou ao Taste of São Paulo, a consultorias para promover chefs periféricos, com destaque para a parceria com o Sesc Pompeia.

Além disso, a GP criou aplicativo que mapeia iniciativas de gastronomia nas favelas. E inaugurou o restaurante Da Quebrada, na Vila Madalena. "Ali, os alunos vivem a prática. E a gente materializa a Gastronomia Periférica: todos os produtores, a arte, a costura, são periféricos", diz Edson.

O impacto aumentou a partir da criação de plataforma de ensino a distância, uma inovação provocada pela pandemia.

Comunicador, herança do rap, Edson viu no audiovisual a saída para manter a GP. Filmou os cursos, "com os moleques da rede". E hoje chega a alunos de 21 estados.

"A metodologia tem uma trilha de educação financeira, letramento digital, higiene e segurança." E uma segunda, que é prática, que ensina técnicas de cozinha e noções de gastronomia africana, brasileira e europeia.

"Mas a gente não é bonzinho, mano, só está garantindo um direito que o Estado não dá", diz o chef, que cresceu no Jd. São Luiz, zona sul paulista, quando fez curso de auxiliar de escritório, embrenhou-se no rap e até trabalhou no McDonald’s —seu primeiro contato com o negócio de comida.

"Com 19, 20 anos, vivi a crise do ‘nem nem’ da adolescência periférica: nem escola, nem trabalho, nem porra nenhuma. É a rua", diz. "Esse gap me deixava mais perto do crime."

"Lembra de São Paulo em 2006?", indaga, sobre a guerra PCC x polícia. "Postos policiais foram metralhados. Não podia sair de casa. Foi isolamento de verdade." E um sinal. "Adolescente na quebrada acha que vai morrer antes dos 30. Eu ia morrer ou fazer merda."

Decidiu vender o material de DJ e comprar passagem para Portugal no cartão de crédito do padrasto. "Fui embora com um amigo e € 300 no bolso."

Edson viveu a saga de imigrante ilegal no além-mar por sete anos. "Chegamos lá sem saber pra onde ir. Nos arranjamos numa pensão, comemos atum e salsicha por uns 15 dias."

Bagulho parece anos 90. Os caras estão roubando para comer. O clima tá tenso na quebrada

Edson Leite

sobre a situação de insegurança alimentar no país

Então, foi atuar como empregado de mesa (garçom, em Portugal). Depois, passou pelas Páginas Amarelas e rodou o país. Mas parou de novo em restaurante, lavando pratos.

Conheceu Daiana, capixaba, mãe da sua filha Isabelli, que nasceu lá, em 2008. Na época, era garçom. "Um dia faltaram as cozinheiras, e a dona me escalou pra cozinhar. Eu não sabia nem fazer arroz, mano."

Ligou para o chef de outro restaurante onde lavava pratos e aprendeu a cozinhar, pelo telefone. "Fiquei assim uns 30 dias, até ser contratado."

Com a cidadania "que a cozinha me deu", Edson fez comida em restaurante, hotel, hospital, navio. E até criou programa em rádio local, o Gueto em Festa. "Tinha rap timorense, moçambicano, caboverdiano, guineense, brasileiro."

O programa de meia hora cresceu para três. "Os caras queriam os Racionais. Conhecia o [Mano] Brown da quebrada, e fiz a ponte. Fui DJ no show", diz Edson.

Ficou na Europa até 2012 devido a uma hérnia de disco, "presente que a cozinha me deu, por má postura". A cirurgia na coluna o devolveu ao Brasil, à casa da mãe, só com a expertise de chef na mala, aos 28 anos.

Foi dar aula numa ONG até virar chef do Clube Pinheiros. "Nessa hora, fui estudar." Escolheu serviço social, o que "me ensinou o que são direitos".

Estudo, trabalho e pouco sono acabou em burnout. Edson bateu o carro e após cinco dias internado, mudou. "O sistema oprime! Você trabalha 12h por dia, passa 6h no transporte público, só para dar dinheiro a quem já tem. O bagulho te faz mal. E aí você começa a procurar um propósito."

Nascia ali o empreendedor social. "Eu precisava transformar as oficinas que fazia na periferia. Aí decidi: é escola de gastronomia que quero." Então ele conheceu Adélia, na ONG em que atuavam. Ela viu a potência de um chef e assistente social, combinação rara.

A psicóloga Adélia Rodrigues, sócia de Edson Leite na Gastronomia Periférica
A psicóloga Adélia Rodrigues, sócia de Edson Leite na Gastronomia Periférica - Renato Stockler/Folhapress

Tornaram-se sócios. "Alimentar de conhecimento e alimento na mesma proporção", máxima de Adélia, virou mote da Gastronomia Periférica. O negócio social surgiu num espaço sem cozinha no Jd. São Luiz, com aporte de R$ 40 mil de uma doadora. "No início, éramos só eu e Adélia. A gente dava aula de tudo."

A primeira turma tinha 20 alunos. Aos poucos, cresceu. Bel Coelho deu aula lá. A chef assina o prefácio de "Por Que Criei a Gastronomia Periférica", livro de Edson que concorreu ao Jabuti de 2019. "Ele transformou a gastronomia em política de inclusão. Sou fã!", diz Bel.

"Quem cria universidade na periferia? Imagina você capacitar as pessoas?", questiona Edson, que planeja abrir escolas físicas nos estados.

Na hora do almoço no Lapenna, ele se despede para pegar o trem. "Gosto de andar pela cidade, sentar no bar, experimentar comidas, ouvir histórias. Não é só a grana. A conexão com as pessoas é que vai manter as estruturas em pé."

É uma espécie de antropólogo, ao costurar relações e arquitetar sua grande mesa, em torno da qual todos se sentarão. "Quando abro o portão de casa, eu levo uma pá de gente. Minha responsabilidade é grande, parceiro."

Projeto em números

- R$ 890 mil em recursos mobilizados
- 688 cozinheiros formados

- 1.403 famílias receberam R$ 90 mil em alimentos e itens de higiene na pandemia
- 21 estados receberam aulas da escola de gastronomia
- 90% dos alunos são mulheres e 80% com idade entre 18 e 45 anos

Conheça os demais finalistas e vencedores do Prêmio Empreendedor Social 2022 na plataforma Social+.

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