Iemanjá negra protagoniza retomada de festa religiosa em Salvador

Celebração na quinta-feira (2) marca os 100 anos do início da tradição de pescadores no bairro Rio Vermelho

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Salvador

A escultura ganhou forma dentro de um território sagrado do candomblé: o terreiro Ilê Obá L’okê, em Lauro de Freitas, cidade da Grande Salvador.

Uma estrutura de metal deu a sustentação e a fibra de vidro moldou a divindade, metade peixe, metade mulher. O acabamento foi feito com tinta, pó de mármore, búzios e conchas, cristalizando a figura de Iemanjá. Uma Iemanjá preta.

Foto mostra uma escultura da orixá Iemanjá negra, com colares de conta no pescoço
Escultura da Iemanjá negra, do artista plástico Rodrigo Siqueira, no altar da colônia de pescadores do Rio Vermelho - Cristian Carvalho / Divulgação

A escultura, feita pelo artista plástico Rodrigo Siqueira, foi levada na última sexta-feira (27) para o altar da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho. A peça será um dos destaques da retomada da Festa de Iemanjá em Salvador, maior festejo popular do país ligado a uma religião de matriz africana.

Na quinta-feira (2), centenas de milhares de pessoas tomarão as ruas do Rio Vermelho desde a madrugada, retomando uma tradição que nos últimos dois anos foi mantida de forma simbólica.

Em 2021 e 2022, o dia de Iemanjá foi comemorado com parcimônia na capital baiana em meio à pandemia da Covid-19. No Rio Vermelho, apenas os pescadores tiveram livre acesso ao mar.

Neste ano, quando se comemoram os 100 anos da tradição de entrega do presente à orixá na colônia do Rio Vermelho, os pescadores apontam para um caminho valorização da herança africana.

A estátua da Iemanjá negra foi doada por meio de uma parceria com o Muncab (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira). No altar dentro da colônia, ela não substitui imagem principal da Iemanjá de pele branca e cabelos negros. A decisão dos pescadores foi dar destaque semelhante às duas peças.

Presidente da colônia de pescadores do Rio Vermelho, Nilo Garrido afirma que houve uma resistência entre os pescadores mais velhos em dar destaque à nova imagem em detrimento da tradicional.

"Eu achei a imagem muito bonita. Por mim ficava no lugar principal, afinal, Iemanjá é negra. Mas ela vai ficar aí, se Deus quiser", afirmou Garrido na segunda-feira (30), enquanto comandava na colônia os últimos preparativos para a festa.

Historicamente, a figura de Iemanjá é marcada por uma iconografia diversa, sendo celebrada como uma espécie de divindade híbrida "fruto do sincretismo das concepções nagô, ameríndia e europeia dos deuses aquáticos", conforme destaca o etnólogo Edison Carneiro (1912-1972), no livro Ladinos e Crioulos.

O resultado é um culto marcado pelo sincretismo, no qual a orixá do candomblé é celebrada no mesmo dia da Nossa Senhora das Candeias e da Nossa Senhora dos Navegantes.

Cintia Maria, presidente do Muncab, destaca a importância reafirmar a identidade africana da divindade. Ela lembra que as religiões afro-brasileiras tiveram um histórico de criminalização e no país e que o sincretismo religioso foi uma forma de resistência.

"Uma parte das casas de candomblé mantiveram o sincretismo outras não. Mas não existe certo e errado. Isso vem de um pensamento que é muito africano de que existem muitas verdades, não existem verdades absolutas", pondera.

Responsável pela concepção e execução da peça, o artista plástico Rodrigo Siqueira diz que a nova escultura representa um momento histórico de reparação e reafirma o compromisso com a ancestralidade africana: "Eu me vejo através dessa Iemanjá, essa Iemanjá me representa."

A tradição da entrega do presente à orixá no Rio Vermelho foi iniciada em 1923 após um ano de pouca fartura. Na ocasião, um grupo de pescadores decidiu consultar os orixás por meio dos búzios para entender a falta de peixes. Foram orientados a pedir ajuda e presentear Iemanjá.

Desde então, a entrega do presente se repete todo 2 de fevereiro, em uma festa reconhecida como Patrimônio Cultural de Salvador. Neste ano, o tema da festa no Rio Vermelho será "Odoyá, 100 anos de Festa e Reverência a Iemanjá".

As comemorações começam com uma alvorada e queima de fogos às 5h no Rio Vermelho, quando o presente a Iemanjá chega à praia de Santana. Ao longo de todo o dia, a colônia de pescadores receberá os fiéis que quiseram deixar presentes e oferendas à orixá.

Além da parte religiosa, a festa é marcada pela apresentação de bandas de sopro, de percussão e grupos folclóricos pelas ruas do Rio Vermelho, além de festas privadas em bares e casas de show.

No final da tarde, os presentes são levados pelos pescadores em uma embarcação para o "Buraco de Iaiá", local que fica a 7,5 quilômetros da costa e que é considerado sagrado pelos pescadores.

Lá, renovam fé e o desejo de fartura no ano que se inicia, conforme explica o pescador Adailton dos Santos, 56: "Para a gente que é pescador e para os adeptos do candomblé, o importante é a fé e aquilo que as pessoas levam no coração. Sem a fé a gente não vai para lugar nenhum".

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