Lei que estabelece ensino de história e cultura africana completa 20 anos com limitações

Educadores defendem melhoria na formação de professores e maior fiscalização do poder público como forma de garantir aplicação nas escolas

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São Paulo

A lei 10.639, que estabelece o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica, completa 20 anos nesta segunda (9) sem um acompanhamento das autoridades sobre sua real implementação, que demanda o interesse de desenvolver uma cultura antirracista e a opção por enfrentar o racismo, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Sancionada em 2003, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que agora volta ao Planalto, a lei foi complementada em 2008 para estender a obrigatoriedade ao ensino médio e incluir povos e culturas indígenas no rol de conteúdos.

Estudantes mostram desenho de um punho fechado, símbolo da luta contra o racismo
Estudantes da escola municipal Ruben Bento Alves, de Caxias do Sul (RS), onde são realizadas atividades escolares que envolvem temas de relações étnico-raciais - Carlos Macedo - 6.out.2022/Folhapress

Para definir como a 10.639 chegaria às salas de aula, um grupo de representantes do Conselho Nacional de Educação elaborou um parecer, em 2004, com diretrizes como a compreensão da diversidade de povos, etnias e culturas do Brasil, a desconstrução de conceitos e comportamentos vinculados ao mito da democracia racial, a análise crítica das representações dos povos negros e de outras minorias em materiais didáticos e a valorização da oralidade no ensino.

Relatora do parecer, a professora aposentada da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, 80, aponta que a lei permitiu avanços, mas permanece no debate uma questão que considera fundamental, assim como nas discussões de políticas afirmativas.

"Falta é que os distintos grupos da sociedade se juntem para responder: que sociedade nós queremos? Para quais sociedade os educadores desses distintos grupos trabalham?", afirma.

Além disso, é preciso que as instituições brasileiras promovam garantias e acompanhem a aplicação da lei.

"Nossa avaliação nesses 20 anos é muito triste. Entendemos que o poder brasileiro é estruturalmente racista, e por quê? Me apresente uma lei que privilegie banqueiros ou o agronegócio que não tenha sido colocada 100% em prática no dia seguinte", diz o fundador da ONG Educafro, frei David dos Santos.

Ele diz que os órgãos que gerem a política de educação, como o MEC (Ministério da Educação), e os que deveriam fiscalizar sua aplicação, MPF (Ministério Público Federal) e CGU (Controladoria-Geral da União), têm sido omissos.

"Fizemos essa denúncia em mais de dez reuniões com o MPF e os MPs [Ministérios Públicos] estaduais, porque estão sendo omissos", afirma.

Procurados, o MEC e o MPF não responderam até a publicação desta reportagem.

Já a CGU diz que não tem acompanhado o cumprimento da lei entre os órgãos de governo, mas que deverá ter esse papel fiscalizador. "É da maior importância a sua inclusão no planejamento das atividades a serem executadas ao longo de 2023", afirma, em nota.

Na ponta, uma queixa frequente entre educadores é a falta de continuidade dos conteúdos da 10.639 nos projetos político-pedagógicos, que orientam como será o ensino na escola. A aplicação, principalmente nas revisões periódicas dos projetos, fica a cargo de professores ligados a estudos étnico-raciais ou associados a organizações do movimento negro.

Uma das respostas seria tratar o tema de forma transversal, distanciando-o cada vez mais de datas como 13 de maio e 20 de novembro. Outra seria melhorar a formação de professores.

"Transformou-se em profissional da educação? Tem que ter essa responsabilidade. Isso vem de macro propostas, do governo federal e estadual, e das micro, no âmbito do projeto pedagógico da escola. Não pode estar solto, tem que estar vinculado a essas propostas", diz Maria das Graças Gonçalves, professora da Faculdade de Educação da UFF (Universidade Federal Fluminense) e consultora de educação do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades).

Gonçalves, que trabalha com a formação de graduandos nas áreas de educação e licenciaturas, diz que o problema é geral. "A universidade que não fala sobre a lei não está fazendo sua parte. Meus alunos, quando chegam, não conhecem. Estudaram a legislação e não sabem dessa lei [10.639]", afirma.

Outra dificuldade para a efetiva implantação da norma é encontrar materiais didáticos com essa temática. Para ajudar nessa busca, um acervo foi lançado nesta segunda na plataforma Anansi - Observatório da Equidade Racial na Educação Básica. A iniciativa é do Ceert, com apoio do Itaú Social, da Fundação Tide Setubal, do Instituto Unibanco e do Unicef.

"O observatório vai agregar um acervo que o Ceert tem, mas será também um lugar de interação entre professores e pesquisadores, para conhecer trabalhos, fazer formação no tema, denunciar e acompanhar processos jurídicos", conta a professora.

Ela explica que o nome da plataforma faz referência a uma aranha tecedora de histórias, entidade da cultura banto.

Aplicar a 10.639 é seguir o que está posto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, diz Givânia da Silva, pesquisadora da UnB e coordenadora do coletivo de educação da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos). Ela integrou o grupo de trabalho da transição de governo para o tema da igualdade racial.

"Precisamos pensar na recomposição do papel do governo, que perdeu caráter de articulador de políticas de promoção de igualdade racial, e olhar para outros ministérios e propor ações transversais", afirma.

Para ela, só a recriação da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), secretaria responsável, entre outros temas, pela promoção do ensino de relações étnico-raciais, não dará conta da tarefa.

"Não se pode mais atuar apenas no plano federal, [o Estado] deve ser indutor de estados e municípios, porque é onde os alunos estudam. Se não os trouxermos para o debate, não teremos efeitos", diz Silva.

Ela defende que é preciso partir da obrigatoriedade da lei para estabelecer metas. "Vamos colocar um horizonte até 2027 e dizer o que devemos ter nesse caminho? É alterar currículo? Implementar em todos ou em 60% dos estados? Não é só orçamento. As pessoas não acessam esses recursos porque ainda não consideram uma questão central."

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