Descrição de chapéu Obituário Evilazio Cruz de Souza (1956 - 2023)

Mortes: Encarnou a história do Nego Fugido de Acupe (BA)

Evilazio Cruz de Souza acreditava na educação como instrumento de transformação da sociedade

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Salvador

Depois de besuntar o rosto com uma pasta à base de óleo de soja com pó de carvão, o soldador aposentado Evilazio Cruz de Souza se transformava em um implacável capitão-do-mato a perseguir escravizados que fugiam dos engenhos do Recôncavo Baiano.

Souza era um dos três membros mais antigos em atividade do grupo cultural Nego Fugido de Acupe, um folguedo endêmico deste distrito de Santo Amaro (BA), que, contam os mais antigos, foi criado há cerca de 200 anos, não se sabe exatamente como nem em que data.

A partir do Nego Fugido, a cada domingo do mês de julho, os moradores locais assumem a narrativa da própria história em substituição à versão de que a liberdade dos cativos fora uma concessão dos brancos, sem que tivesse havido luta por parte dos antigos escravizados.

Evilazio Cruz de Souza (1956-2023)
Evilazio Cruz de Souza (1956-2023) - Arquivo pessoal

"É a educação na prática. É a história da sua família, do seu avô, da sua cidade, da rua. Vem o folclore, resume tudo isso e passa a contar", disse Souza, certa feita, em entrevista ao Sesc São Paulo, em uma apresentação a convite nas ruas do centro da capital paulista.

Com o Nego Fugido, Souza se apresentou em diversos estados, participou com o grupo da novela Velho Chico, além de ter sido um dos responsáveis pela fundação da Casa do Nego Fugido – Museu Vivo dos Saberes e Fazeres do Recôncavo.

Em meio a um grupo com cerca de 60 pessoas, ele costumava destacar a indumentária feita com um saião de folha seca de bananeira, cabaças, colete de couro e chapéu de vaqueiro com um macacão laranja dos tempos em que atuava como prestador de serviço à Petrobras.

"Os personagens são os negros fugidos e os caçadores, os capitães-do-mato, que ganhavam dinheiro para capturar seus irmãos. Desgraçados contra miseráveis", comparou. "O objetivo é esse. Contar o que foi a escravidão, para que não caia no esquecimento", emendou, à época.

As apresentações das quais Souza fazia parte contêm elementos de dança, canto, declamação e música instrumental ao som de atabaques. Além do rosto pintado, outro traço marcante dos personagens é a boca vermelha de "sangue", efeito obtido com o uso de papel crepom.

O grupo narra o drama vivido pelos negros, desde o sequestro no continente africano, o tráfico transatlântico, o trabalho forçado, a fuga para momentos de alegria, a perseguição, a captura pelos capitães-do-mato, até passagem do chapéu para a compra da alforria.

"A alforria é um dos atos, mas a mensagem mais importante é a luta contra a monarquia, contra o rei de Portugal, pois era preciso derrubar todo um sistema político de colonização", explica o doutor em artes cênicas pela USP Monilson Pinto.

Nascido em Acupe em 9 de novembro de 1956, Souza entrou em depressão após perder o neto Tales em um acidente, em dezembro passado, o que o levou a se descuidar com os medicamentos para hipertensão e diabetes, conta a filha Lidiane Moura, mãe do garoto.

"Ele era apaixonado pelos netos. Com a depressão, não se alimentava direito. A suspensão dos medicamentos provocou um edema. Ele chegou a ser levado para uma clínica, mas não resistiu", lamentou a enfermeira radicada na capital paulista.

Moura lembra que, apesar do pouco estudo, o pai dava muito valor à educação, tanto que os quatro filhos são formados. "Era muito inteligente, muito eloquente, se expressava muito bem. Se tivesse estudado, certamente, chegaria a doutor."

Para Monilson, a morte de Souza, aos 66 anos, representa mais uma perda irreparável daqueles a quem chama de "bibliotecas vivas". "Junto com João do Boi, Nicinha do Samba, expoentes da cultura popular do Recôncavo, com um conhecimento que não está nos livros."

Morto no último dia 26 de janeiro, Souza foi sepultado no dia seguinte no cemitério de Acupe. Deixou os filhos Lidiane, Evilazio Junior, Daiane e Hebert e os netos Natan, Artur, Ivy, Eliabe, Isa, Alice e Gabriele, além dos demais familiares e amigos.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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