Armas usadas na Segunda Guerra são alugadas em clubes de tiro

Valor do aluguel de armas proibidas no Brasil varia de R$ 65 a R$ 900; Exército não se manifestou

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Brasília

Armas usadas na Segunda Guerra Mundial são alugadas em clubes de tiro no Brasil. São modelos de disparo automático que, segundo a lei, só poderiam ser utilizados pelas Forças Armadas.

O Cenfa (Centro de Formação de Atiradores), em São Paulo, aluga uma submetralhadora Thompson M1A1. A arma foi fabricada na década de 1940, baseada num modelo de 1928 chamado M1.

A peça disponível no clube Cenfa foi usada pelo Exército dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. A arma tem capacidade de efetuar 700 disparos por minuto.

Em um vídeo publicado no Youtube é possível ver um frequentador do clube efetuando uma rajada de tiros, ou seja, diversos disparos ao mesmo tempo.

Nas redes sociais do Cenfa, outro frequentador que utilizou a arma comentou a experiência. A M1A1 não é mais fabricada, e ele se demonstrou surpreso por encontrar esse modelo no Brasil.

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Postagem em rede social de pessoa que frequentou o clube Cenfa - Reprodução

"A arma que foi desenvolvida por John Taliaferro Thompson —por ser rara aqui no Brasil, acreditava que só seria viável atirar com ela ao ir visitar os Estados Unidos, no entanto, a vida é uma caixa de surpresas…", escreveu.

"A sensação foi incrível para quem desde criança já sonhava com isso, através de jogos como Call of Duty ou Medal of Honor... Sonhei até que pude disparar com essa que é uma das armas de fogo mais importantes da história", continuou na postagem.

O aluguel de uma arma de disparo automático no clube custa a partir de R$ 65 a diária. Cada munição recarregável calibre 45 custa R$ 4,80. Não há necessidade de reserva.

O estabelecimento trabalha com produtos de marcas como Beretta, Smith & Wesson, Gran Power, Imbel, Taurus, Thompson e Ak 47. Procurado, o Cenfa não quis se manifestar.

Ivan Marques, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que armas de uso automático só podem ser usadas no Brasil pelas Forças Armadas. Há inclusive decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) reforçando a proibição. CACs (colecionadores, caçadores e atiradores) não podem ter acesso a esses modelos.

Os CACs foram grandes beneficiados com decretos publicados no governo Bolsonaro, com acesso a calibre antes restritos para essas categorias, como fuzil. Entretanto, o grupo só pode adquirir modelos com disparo semiautomático, ou seja, quando o gatilho precisa ser acionado para cada disparo.

O especialista atribui a existência de armas de disparo automático em clubes de tiro à baixa fiscalização por parte do Exército. Para ele, a Força deveria confiscar esse tipo de armamento.

"Uma arma dessa ser usada em clube de tiro é sinal de que existe uma falha grave na fiscalização do Exército. Ela é restrita às Forças Armadas justamente pelo perigo que apresenta na sua baixa capacidade de proporcionar um tiro preciso, fazendo do alvo uma área incerta. Na mão de pessoas menos capacitadas, gera acidentes e mortes. Num clube de tiro essa arma está mais [exposta] ao risco de ser roubada e desviada ao crime", disse.

Roberto Uchôa, pesquisador e policial federal, concorda. Segundo ele, o fato de os clubes divulgarem abertamente armas em redes sociais e sites é a prova de que seus proprietários acreditam na impunidade.

"É uma crença muito grande na impunidade, na falta de fiscalização do Exército. A gente teve uma expansão enorme de clubes de tiro e CACs e diminuição do orçamento da fiscalização. Quando o crescimento das duas coisas não anda junto, a conta não fecha e aparecem os erros, abusos", disse.

O Exército foi procurado, mas não se manifestou.

O clube paulista não é o único a alugar uma M1A1. O Centro de Tiro TacPro Brasil, em Brasília, faz a locação dessa arma e também de modelos usados pelo Exército alemão na Segunda Guerra, como a submetralhadora MP40 e a metralhadora MG42. Essa última pode efetuar até 1.200 disparos por minuto.

Os Estados Unidos e a Alemanha lutaram em lados opostos da Segunda Guerra, que ocorreu de 1939 a 1945. Durante o período, marcado pelo lançamento de bombas atômicas e pelo Holocausto, mais de 60 mil pessoas morreram.

O Clube TacPro tinha em seu site um carrinho de compras onde qualquer pessoa poderia adquirir um pacote contendo o aluguel da arma e munições, mas depois retirou o anúncio dessas armas do site. O valor chegava a R$ 900.

"Toda locação de armas automáticas acompanha um instrutor para garantir o funcionamento ideal da arma e que todas as regras de segurança sejam cumpridas", disse o comunicado do site.

A Deutsche Welle publicou uma matéria mostrando que este último clube de tiro aluga arma de guerra. Na ocasião, a reportagem falou sobre a submetralhadora MP5, mesmo modelo usado para matar a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, em março de 2018.

O Clube TacPro foi procurado, mas não se manifestou.

A Folha tem mostrado problemas na fiscalização do Exército a CACs, clubes de tiros e lojas de armas. Uma auditoria realizada pelo TCU (Tribunal de Contas da União) apontou indícios graves de fragilidade na atuação da Força.

Segundo o TCU, durante a fiscalização foram encontrados casos que se enquadram em crimes previstos no Estatuto do Desarmamento. Os documentos, entretanto, não permitem concluir se as possíveis irregularidades foram encaminhadas à polícia.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu início à revogação de decretos e portarias para conter a política armamentista da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Segundo o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, o primeiro decreto já possui um efeito imediato no controle de armas porque suspende a autorização para abertura de novos clubes de tiro e aquisição de armas de uso restrito e de munições.

"Ele [decreto] não trata das armas já vendidas, isso vai ser debatido com o grupo de trabalho, tudo isso com a estruturação do programa de recompra. Mas é um decreto que vai na direção certa de restabelecer o controle de armas", afirmou Dino.

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