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Único quilombo de Florianópolis vive sob incertezas e pode perder território

Primeira comunidade oficialmente reconhecida da capital catarinense ocupa área de posse do Instituto do Meio Ambiente regional

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imagem de um camping à noite

O quilombo Vidal Martins, em Florianópolis Adriano Vizoni/Folhapress

Florianópolis

Helena Vidal Martins, 41, diz não acreditar em fantasmas. Vez ou outra, porém, sons como o estalar de chicote e o arrastar de correntes chegam a seus ouvidos de maneira misteriosa.

O barulho, segundo ela, é parte das sensações peculiares que sente ao caminhar pelas terras do quilombo Vidal Martins —a única comunidade quilombola reconhecida de Florianópolis (SC). Foi ali, nos arredores da lagoa da Conceição, que seus ancestrais foram escravizados.

A área é hoje alvo de uma disputa entre quilombolas e o Instituto do Meio Ambiente (IMA) do estado.

um par de mãos negras fechadas entre si
Mãos da quilombola Helena Vidal Martins, 47, da comunidade Vidal Martins, localizada em Florianópolis, em Santa Catarina - Adriano Vizoni/Folhapress

"O IMA vê nosso quilombo como um tropeço. Nós não vemos eles assim. Pelo contrário. A gente vê benefícios [na presença do instituto]", diz Helena, presidente da associação da comunidade, que leva o nome de seu tataravô.

Após vasculhar uma papelada de documentos, em 2012, ela descobriu que seus ancestrais escravizados tinham uma relação direta com o território onde vive.

"A gente foi o pesquisador da nossa própria história", afirma. "Foi muito difícil. Dava desânimo. Sofríamos por ser mulher, negra, sem estudo. Mas eu sentia que os documentos falavam: ‘vai lá, pesquise’. Eu me arrepiava."

Ao verem os registros, ela e seu núcleo familiar passaram a se reconhecer como remanescentes de quilombo.

Em 2013, a comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares. Desde então, luta para titular 961 hectares de terra. Mais da metade do espaço reivindicado, no entanto, está sobreposto ao Parque Estadual do Rio Vermelho.

Fundado em 2007, o parque é uma unidade de conservação de proteção integral. Por isso, a regularização do Vidal Martins depende de um acordo oficial entre os quilombolas e o IMA, responsável pelo espaço atualmente.

A entidade estadual diz que "não se manifesta contrário à demarcação[...], mas preza que sejam respeitadas todas as etapas necessárias e previstas em lei para que tal ato seja válido".

Helena diz que o governo não se interessa em resolver a questão. Procurada, a gestão de Jorginho Mello (PL) não se manifestou.

Além da titulação, a comunidade enfrenta outro embate: o quilombo está sob o risco de perder parte de suas casas devido a uma possível reintegração de posse movida pelo IMA.

A ação se refere ao camping do parque, que desde 2020 é ocupado por alguns membros da comunidade. O local, que fica na região de Mato Alto, seria o mesmo onde o escravizado Vidal Martins teria vivido, no século 18, conforme indicam documentos avaliados pela Fundação Palmares —e contestados pelo IMA.

O instituto afirma que a comunidade "invadiu o parque e estourou os cadeados", sem qualquer comunicação prévia.

"É uma retomada", rebate Helena, que vive no camping ao lado de nove famílias. "Muitos de nós estavam com casas precárias. Precisavam fazer as necessidades em baldes. Nem banheiro tinham."

A comunidade segue com problemas de infraestrutura. A própria presidente dorme todas as noites em uma cama improvisada em uma barraca.

O local também é usado como sala de aula, na qual Helena ensina jovens e adultos através do método Educação Escolar Quilombola, que é reconhecido pelo Ministério da Educação e tem como foco a valorização dos povos negros e quilombolas do país.

Em relação ao camping, o IMA diz aguardar a decisão judicial tanto em termos de posse, como de gestão.

Anos atrás, o conflito com a comunidade chegou a render ao IMA uma condenação por racismo. A decisão foi revertida pela Justiça, em 2021.

Apesar de todo enrosco burocrático envolvendo a regularização do território, Helena se diz confiante. Ela atribui o otimismo à singularidade emocional que nutre pela sua ancestralidade.

"Não consigo ouvir música sobre escravo. É como se eu voltasse no tempo. Antigamente, sonhava com uma ‘senhora de idade’ sentada numa cadeira de madeira. Ela me mostrava uma rua que, depois, percebi ser esta daqui", diz, em referência ao trajeto que dá entrada ao camping.

placa mostra nome de comunidade quilombola
O Quilombo Vidal Martins, em Florianópolis, luta na justiça há anos para conseguir a posse e a administração definitiva do local - Adriano Vizoni/Folhapress

Helena afirma que tanto seu avô, Isidro Boaventura Vidal, como sua mãe, Jucélia Beatriz Vidal, nasceram ali, mas teriam sido expulsos, na década de 1960, numa ação comandada pelos responsáveis da extinta Estação Florestal do Rio Vermelho —unidade hoje conhecida como Parque Estadual do Rio Vermelho.

"Meu avô sempre dizia: 'eu não vou ver minhas terras de novo, mas eu juro que um dia vocês verão’".

Idealizada desde 1950, a reserva levou a um processo de expropriação de vários habitantes da região.

Segundo Marcelo Spaolonse, antropólogo e analista do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em Santa Catarina, a ação modificou boa parte do ecossistema local devido à tentativa de explorar uma espécie de pinheiro que não era típica da região.

Conhecido por investigar o que chama de golpe da reforma agrária catarinense, o ecologista Gert Schinke defende que, conforme documentos da época, nesse período houve uma série de fraudes nas concessões de terra feitas pelo Estado, incluindo a área do parque.

Agora, o Incra (uma autarquia federal) afirma que esse trecho é da União, não do Estado.

uma boneca de pano negra e cabelo colorido
Uma das bonecas feitas nas atividades de artesanato da comunidade Vidal Martins, de Florianópolis, em Santa Catarina - Adriano Vizoni/Folhapress

Procurado, o Ministério Público Federal afirmou que não iria se manifestar sobre o tema. Já a Secretaria do Patrimônio da União diz que, após uma análise inicial, constatou que parte dessa área pertence à União, mas que sua demarcação não está está homologada. O órgão afirma ainda que tem trabalhado no caso e "está ciente da relevância da demanda".

Com 31 famílias, o quilombo Vidal Martins vive hoje entre os arredores do que Helena chama de "pontos dos escravos", uma série de locais simbólicos para a comunidade.

A apelidada terra dos órfãos, por exemplo, teria sido, durante o regime escravocrata, um cemitério negro, sobretudo de crianças. "É uma história muito triste", diz Helena. "Mas hoje em dia eu tô mais alegre. Estamos mais próximos da titulação. É uma questão de justiça."

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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