Descrição de chapéu Livros plano diretor

Plano Diretor é ditado pelos filhos da aristocracia de São Paulo, diz urbanista

Joice Berth, autora de 'Se a Cidade Fosse Nossa', critica gestão paulistana e defende urbanização menos racista

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Do assobio indesejado ao andar pelas ruas aos arranha-céus sem fim, a urbanista Joice Berth diz que são muitos os sinais de opressão e racismo nos espaços urbanos.

A autora de "Se a Cidade Fosse Nossa", lançado neste mês, critica o novo Plano Diretor de São Paulo e sugere uma lei mais inclusiva e pensada nas pessoas marginalizadas. "Por trás desse modelo estão os filhos da aristocracia que se negam a enxergar o laço racial da divisão e problemas da cidade."

Joice é uma mulher negra de cabelos longos que estão presos em um rabo. Ela veste uma camisa branca de mangas longas.
Joice Berth, arquiteta e urbanista que lança o livro 'Se a Cidade Fosse Nossa' - Divulgação

Moradias cada vez menores, retrofits de alto padrão em regiões centrais e o conceito de "áreas nobres" são outras pautas que, na visão da urbanista, colaboram para a continuidade do movimento colonial e segregação nos espaços urbanos.

Em nota, a Prefeitura de São Paulo informa que o município realizou processo participativo amplo, democrático e transparente para discutir os ajustes no Plano Diretor, com mais de 12 mil contribuições. De acordo com o Executivo, o trabalho participativo foi reconhecido pelo Ministério Público de São Paulo.

Em 'Se a Cidade Fosse Nossa' você trabalha com racismos e opressões nas cidades. Como esses pontos são observados numa cidade como São Paulo?
Existe uma divisão entre cidade branca e uma cidade negra dentro do mesmo município. Em São Paulo, as áreas centrais, com maior renda e melhor infraestrutura, são predominantemente brancas.

Na periferia, é mais fácil encontrar concentração de pessoas negras, onde também é visível falta de infraestrutura, presença repressora da polícia e precariedade das moradias.

E quando uma pessoa negra sai desse nicho e adentra essas áreas brancas é perceptível uma rejeição e repulsa pelos olhares, pela perseguição, em um cerceamento subjetivo que também é muito forte.

E quais os impactos desse novo Plano Diretor na cidade? Se negativos, ainda existe algo que possa ser feito para tentar minimizar?
Nesse livro eu mostro que não adianta ignorar a história. Somos produtos dela e tudo o que acontece hoje no país é resultado de um processo histórico. Se queremos mudar as coisas, precisamos propor soluções que vão mexer na raiz dos problemas.

Temos um Plano Diretor feito para atender a lógica imobiliária e mercadológica. Na gestão [do ex-prefeito Fernando] Haddad houve um ensaio expressivo para equacionar os problemas históricos da cidade.

Então, todas as decisões tomadas pela lei anterior foram amplamente discutidas e ancoradas no laço histórico, apesar da falta de conhecimento sobre a divisão racial da cidade.

Esse novo projeto está desconectado dos ideais de uma cidade para as pessoas. Isso é uma continuidade da história, as cidades foram formadas para a manutenção da mentalidade colonial com a configuração de casa-grande e senzala, com os centros de maior poder aquisitivo nos melhores lugares.

E quando se fala em senzala ou quilombo, se fala das periferias que continuam na precariedade.

Temos uma ampla discussão de técnicos e urbanistas contrários a essa proposta de Plano Diretor. Mas por trás desse modelo estão os filhos da aristocracia que se negam a enxergar o laço racial da divisão e problemas da cidade. Então não tem nem argumentação que sensibilize quem apenas pensa no lucro.

Então o novo Plano Diretor é moldado em racismo estrutural?
Exatamente. Ao olhar para São Paulo se entende o que é uma estrutura racista.

Na Vila Madalena [zona oeste], por exemplo, não existe morador preto. Existem ali trabalhadores pretos, numa expressão óbvia da continuidade do período colonial. E na periferia, quando se tem uma pessoa branca, ela facilmente consegue sair dali porque a raça dá a ela oportunidades na "casa-grande" da cidade que a pessoa preta da favela não vai ter. Esse Plano Diretor vem mais uma vez afirmar que essa é a intenção.

E como o falocentrismo aparece?
Os planejadores da cidade são, majoritariamente, homens, arquitetos e urbanistas. Por exemplo, não tem negras discutindo o novo Plano Diretor, assim como tem poucas mulheres, e quando tem, são sempre brancas.

Temos uma cultura patriarcal e falocêntrica que naturaliza o poder como pertencente ao homem. A predominância do falo está expressa nas construções, na configuração dos prédios, além das decisões hierárquicas.

Essa coisa da verticalização tem um traço fortíssimo de falocentrismo porque representa um padrão de pensamento. Num prédio comercial, no topo está a diretoria, o dono do poder. Na base, quem oferece serviços.

A população vivendo nas ruas em São Paulo aumentou nos últimos anos. Uma eventual reeleição de Ricardo Nunes (MDB) perpetuaria esse cenário de racismo urbano?
Com toda certeza, porque, infelizmente, não temos uma questão racial séria olhando para o espaço urbano, e isso é uma falha dos movimentos sociais que acabam negligenciando essa parte tão importante para a população negra.

Não vejo os progressistas muito interessados em uma solução séria para a questão racial no Brasil, mas pelo menos dentro desse campo a negritude consegue se apropriar melhor e pautar suas necessidades com um pouco mais de força. O sistema de cotas é um grande exemplo disso.

Agora, quando você pensa na política conservadora da qual Ricardo Nunes faz parte, com um vínculo com a mentalidade bolsonarista, se percebe um ódio racial. Em nenhum momento ele discute a questão racial na cidade.

Acredito que houve, sim, alguns pequenos avanços para a negritude, mulheres e LGBTs. Mas essa ala conservadora, da qual Nunes faz parte, num contra-ataque a essas vozes, não tolera essa emancipação.

Então uma reeleição de Ricardo Nunes, ou de algum político com a mesma mentalidade, dá continuidade a esse retrocesso. [A prefeitura foi questionada sobre a opinião da urbanista a respeito de "ódio racial" e de que a reeleição Nunes seria retrocesso para comunidades minoritárias, mas não comentou esses pontos].

Em São Paulo existe um aumento na venda e procura por apartamentos de até 30 . É uma tendência?
A questão é a seguinte: quem é o público-alvo dessas moradias?

Vão ocupar esses lugares executivos, estudantes, pessoas de famílias de alto poder aquisitivo. Então, esses imóveis são mais para investimento do que para moradia. Mas é uma cortina de fumaça, porque convence a população pobre justamente de que é uma tendência.

Aqui vemos a distância de mundo, porque quando a Prefeitura de Campinas entrega para uma ocupação moradias de 15 m², as construções de mesmo tamanho na região central de São Paulo podem ser usadas como um parâmetro.

São esses truques com a mentalidade das pessoas, que faz muitos se conformarem. São mundos diferentes. Ninguém vai morar em um estúdio na Vila Madalena com uma família de sete pessoas.

Fazendo alusão ao título do seu novo livro, o que podemos fazer para que a cidade seja nossa?
Temos que garantir a livre mobilidade das pessoas à margem. Precisamos de um tecido urbano mais homogêneo, e esses polos de maior renda precisam ser questionados.

No meu livro eu critico o termo "áreas nobres". Por que só são ocupadas por pessoas brancas? Por que a negritude só pode entrar nesses lugares para prestar serviço? Por que não pode ter um CDHU [programa de moradia] no Pacaembu?

Devemos questionar ainda por que as mulheres são tão hostilizadas e por que o corpo feminino ainda é considerado público no trânsito pela cidade.

Precisamos de uma cidade onde a gente possa caminhar sem brigar com os carros, porque a gente tem uma luta entre pedestres e veículos motorizados.

Para a cidade ser nossa precisamos de segurança, moradia adequada para todas as pessoas, e ocupar espaços de poder.


RAIO-X | Joice Berth, 47

É arquiteta, urbanista e escritora. É colunista da revista Elle Brasil e criadora de conteúdo digital sobre questões raciais, desigualdades e saúde mental

Se a Cidade Fosse Nossa

  • Preço R$ 69,90 (274 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Joice Berth
  • Editora Paz & Terra
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.