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Lia Vainer Schucman e Rafael Mantovani

Ausência de leis racistas no Brasil não invalida conceito de racismo estrutural

Ao contrário do que afirma Muniz Sodré, fatores estruturantes de uma sociedade não precisam passar por normas jurídicas

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Lia Vainer Schucman

Professora do Departamento de Psicologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora de “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo” e “Famílias Interraciais: Tensões entre Cor e Amor”

Rafael Mantovani

Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autor de "Modernizar a Ordem em Nome da Saúde: a São Paulo de Militares, Pobres e Escravos (1805-1840)”

[RESUMO] Crítica de Muniz Sodré ao conceito de racismo estrutural não convence, sustentam autores, para quem a ausência de uma legislação explicitamente racista no país pós-Abolição não deve ser considerada um entrave à apreensão do racismo como processo estruturante da sociedade brasileira.

A entrevista de Muniz Sodré à Folha, publicada no último dia 18, parece ter abalado a noção que estava na boca de todos: o racismo no Brasil é estrutural. A leitura do texto deixou muitos de nós com questionamentos: e agora? posso continuar usando o conceito?

Um dos pontos centrais da entrevista, que está em seu título, indica que o conceito de racismo estrutural é falho científica e epistemologicamente, porém eficaz politicamente. Nosso intuito aqui é demonstrar, a partir da própria epistemologia e de conceitos científicos, que é possível afirmar que o racismo no Brasil é estrutural, tranquilizando aqueles que, por momentos, ficaram sem saber se o que estava consolidado tinha deixado de ser um argumento válido.

Protesto de movimentos negros em frente ao Masp, em São Paulo, contra a violência policial - Amanda Perobelli - 13.mai.21/Reuters

Conceitos não são apenas abstrações de acadêmicos ilhados em um mundo à parte. Conceitos sociológicos surgem depois de uma análise sistemática da realidade social e são referendados por uma comunidade de especialistas que verificam sua validade e eficácia na explicação do mundo social. Posteriormente, esses conceitos podem se tornar úteis politicamente, informando princípios de organização jurídica e institucional.

Já que ninguém nega o racismo neste debate e é a noção de estrutura que desperta o desacordo, a primeira pergunta que se impõe é: o que é, afinal, estrutura social?

A sociologia não é uma ciência paradigmática, ou seja, não possui apenas um referencial teórico. Na sociológica clássica, temos três correntes de pensamento que guiam o conhecimento sociológico, lideradas pelas obras de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber. Os três fundadores da disciplina têm maneiras diferentes de explicar a estruturação da sociedade.

Marx entende que existe uma base econômica que informa a superestrutura social (a ciência, o Estado, as leis, a religião, os costumes etc). Isso quer dizer que a maneira como está estabelecida a base material da vida determina a maneira como esses indivíduos acreditam, pensam e criam leis e hierarquias sociais, o que resulta na dominação de uma classe.

Durkheim afirma que a sociedade se impõe por "fatos sociais", ou seja, maneiras de agir, sentir e pensar que são gerais, externas e coercitivas aos indivíduos. Para Durkheim, a sociedade impele esses modos de pensar, os tipos de sentimento e os jeitos de agir, criando uma padronização e rotinização social que possibilita acordos morais sobre o que se concorda e o que não se concorda.

Weber entende que o sentido que o indivíduo dá à ação gera uma personalidade histórica coletiva que estrutura comportamentos e pensamentos sancionados e, também, a ordem social pautada na dominação. Por exemplo, o sentido que protestantes deram à sua existência na Terra determinou a sua ação nela (que deveria ser racionalizada para a otimização das suas tarefas cotidianas), padronizando as condutas do grupo ao mesmo tempo que colaboraram para a emergência da dominação racional.

Notemos que as três compreensões de estrutura social afirmam que o que é estruturante da sociedade não precisa, necessariamente, passar pelo Estado e pela letra da lei.

A fonte da estruturação social, para Marx, está na sua organização econômica e pode se expressar na religião, por exemplo, que produz crenças que redundam em práticas sociais. Para Durkheim, a fonte está nas maneiras de agir, sentir e pensar que geram coesão. Para Weber, está no sentido que o agente dá à sua própria ação e que geram um tipo de ordem social.

O fato de não estar no Estado, portanto, não descaracteriza um fenômeno como estruturante e estrutural. Estrutura é aquilo que dá forma a uma sociedade, e as maneiras pelas quais a sociedade se estrutura são as mais diversas. O costume é uma delas, crenças são outra. O que um dia foi estruturado pela economia escravagista se tornou estruturante da cultura e dos costumes e estrutural pelo conjunto de fenômenos que o mantém.

As leis, ao contrário, podem não estruturar nada. No caso do Brasil, a única lei que temos sobre racismo é para impedi-lo. Se a estrutura fosse a lei, teríamos um país antirracista. No entanto, neste caso, o que rege é a cultura racista. Portanto, a ausência de uma organização racista na legislação civil depois de 1888 não é indicativo de que o racismo não estrutura a sociedade.

Depois de citar os clássicos, é importante mencionar o conceito de estrutura usado por Silvio Almeida para construir o argumento central em que assenta a noção de racismo estrutural. O autor usa a versão althusseriana do materialismo histórico, que compreende a estrutura como resultado de processos socio-históricos que constroem a forma da sociedade, bem como instituições, grupos sociais e sujeitos —como, no Brasil, a escravidão.

Seria impossível pensar que algo poderia, ao mesmo tempo, estar nas relações interpessoais (afetos e subjetividade) e nas instituições de um país e não estar na estrutura. Afinal, sujeitos se constituem por meio da apropriação dos significados construídos na sociedade: são esses os responsáveis por manter as estruturas funcionando, legitimando-as. Portanto, para Almeida, não haveria racismo estrutural sem indivíduos e instituições racistas.

Racismo estrutural não é um conceito novo, apesar de vir sendo amplamente divulgado pelo autor. O conceito tem sido usado por todo um campo de intelectuais das relações raciais —no país, pelo menos desde a década de 1970, quando Carlos Hasenbalg publicou "Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil".

Dizer que ele só é válido politicamente não dissolve a questão, pois são os conceitos embasados cientificamente por estudos que garantem a legitimidade do uso político. Talvez o episódio possa ser uma chance de explicar o conceito e debater seus pressupostos.

Em 1999, o cientista social Antonio Sérgio Alfredo Guimarães definiu o racismo brasileiro como um sistema, uma estrutura de produção de desigualdade que abrange três dimensões: (1) a crença na ideia de raça, (2) a discriminação e (3) a situação persistente e estrutural de desigualdade entre brancos e não brancos. Portanto, para afirmar que o racismo é estrutural, é necessário observar se a organização racista encontra ecos na generalidade da vida social brasileira.

A pergunta em jogo seria: o racismo está na educação, no acesso à saúde, no mercado de trabalho, nos quadros de mando, nas crenças sobre potencialidades individuais, no simbólico e nas relações afetivas e cotidianas? A resposta é sim.

O Relatório das Desigualdades Raciais de 2022, produzido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), mostra que as desigualdades estão presentes em diferentes momentos do ciclo de vida do indivíduo —da infância, passando pelo acesso à educação, à saúde, à segurança pública, ao saneamento básico e à infraestrutura urbana, resultando na posição no mercado de trabalho e no valor dos baixos rendimentos e nas condições de vida como um todo. O racismo organiza o poder econômico, o Poder Judiciário, o acesso à saúde, à educação e todas as condições de vida, estruturando nossa nação.

Outro ponto colocado no debate para desestabilizar o conceito é que as estruturas sociais brasileiras não funcionam. Por que então justamente o racismo, como estrutura, funcionaria?

Afirmar que as estruturas sociais no Brasil não funcionam equivale a dizer que não existe sociedade brasileira. As estruturas no Brasil têm um funcionamento próprio, que prevê exatamente a manutenção das desigualdades, que, para além do que manda a lei, estrutura uma das sociedades mais desiguais do mundo e gera estabilidade na injustiça.

Portanto, se a legislação econômica liberal não estrutura a economia e a sociedade brasileira, isso não significa que esta sociedade não esteja estruturada: significa simplesmente que ela está estruturada em outro âmbito. Logo, se as estruturas legais e expressas não funcionam, isso não significa que não haja estrutura social alguma. Não há sociedade sem estrutura social. Afirmar o contrário é uma contradição em termos.

Questionar um conceito científico é sempre legítimo e importante, mas, neste caso, acaba por não convencer. Assim, podemos seguir lendo, citando e nos baseando nos trabalhos que tratam da estrutura racial do país: além de sociologicamente adequado, tem auxiliado todo o mundo jurídico e instituições a implementar ações afirmativas de combate ao racismo.

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