Depoimento: Vivemos normalmente em Maceió enquanto assistimos à destruição do nosso patrimônio imaterial

Áreas afetadas, transformadas em bairros-fantasma, carregavam parte da história da capital alagoana

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Maceió

Querem saber como estamos aqui em Maceió.

A verdade é que, com exceção das dezenas de milhares de pessoas diretamente e fisicamente afetadas pelo afundamento do solo por causa da mineração da Braskem, a vida segue seu rumo "normal" na capital alagoana.

Funcionários se deslocam para seus trabalhos. Comércios funcionam. Turistas aproveitam as praias. Moradores caminham pela orla. Aparentemente, nada mudou para além daquelas áreas sob risco de colapso —que há anos foram esvaziadas e hoje são bairros-fantasma.

Essa aparente normalidade, contudo, oculta o fato de que, na verdade, nenhum dos maceioenses está de fato "normal".

Casas abandonadas e parcialmente destruídas no bairro Bom Parto, em Maceió - Josué Seixas/Folhapress

Maceió é uma cidade de quase 1 milhão de habitantes. As minas decadentes da Braskem desabrigaram cerca de 60 mil pessoas.

A proporção não parece grande, mas os bairros do Mutange, Bom Parto, Bebedouro e Pinheiro eram dinâmicos e vivos e compunham a história da cidade e o repertório afetivo de boa parte dos maceioenses, mesmo daqueles que não moravam ali.

"Massayo", origem do nome da cidade, quer dizer "aquele que tapa o alagadiço". Ou seja, é um local entre os alagadiços da lagoa, de um lado, e do mar, do outro. Não à toa, é nessas regiões alagadiças que a cidade prosperou primeiro.

Nesses bairros à beira da lagoa, como Bebedouro, Mutange e Bom Parto, havia empresas, igrejas muito frequentadas, comércio pujante e diversos serviços públicos e privados.

Bebedouro chegou a ser reduto da burguesia alagoana no início do século passado. Os bondes que iam e vinham para o centro passavam diante de casarões erguidos na via principal. A praça Coronel Lucena Maranhão era tradicional ponto de comícios em um estado que respira política.

E o Mutange, sinônimo de CSA, o mais tradicional e popular time de futebol de Alagoas? O estádio, inaugurado em 1922, foi palco de algumas das maiores conquistas do clube, agora desalojado.

Quase todos nós tínhamos alguma ligação com os bairros afetados.

Nunca cheguei a morar lá, mas conhecia bem o local. Quando criança, passava dias inteiros pelas ruas do Pinheiro —num tempo em que crianças ainda brincavam na rua—, entre casas de primos e amigos próximos.

Tudo isso fica bem perto da região central e do bairro do Farol —em que há áreas que ou foram parcialmente afetadas ou vivem com o terror de serem alcançadas pelo desastre.

O centro por onde flanava a raposa do Ninho de Cobras do imortal Lêdo Ivo. E o Farol de Djavan, onde o cantor passou a infância.

"Eu fui batizado na capela do Farol, matriz de Santa Rita, Maceió", compôs o cantor na ode saudosista "Alagoas". Eis que o local —hoje não mais uma capela, mas uma igreja maior—, que também eu frequentei quando criança —Djavan era vizinho do meu avô—, fica a 2 km de onde o solo já está afundando.

É parte da nossa história afetiva que se vai chão abaixo.

Então querem saber como nós, maceioenses, estamos? Pois bem, estamos perdendo um pouco da nossa memória, da nossa história. E seguimos vivendo nossas rotinas enquanto assistimos a essa destruição, em câmera lenta, do nosso patrimônio imaterial, enterrado alguns centímetros por dia.

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