Descrição de chapéu violência

Espancado até morrer, pedreiro foi vítima de fake news em Suzano (SP), diz polícia

Sete homens foram presos por suspeita de participação no linchamento; vereador é investigado por propagação de notícia falsa e incitação ao crime

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São Paulo

A motorista de aplicativo Ariceli Santos, 46, só chora ao falar sobre o filho. A lembrança do rapaz que saiu do Recife para tentar ganhar a vida em São Paulo e ajudar a família que ficou na capital pernambucana tira seu sono. Vítima de uma mentira, conforme a investigação policial, Rafael dos Santos Silva, 22, foi espancado até a morte em dezembro, em Suzano, na Grande SP.

De acordo com a Polícia Civil, o linchamento ocorreu após a disseminação de uma fake news de que o jovem teria matado três cães. Um vereador da cidade chegou a compartilhar nas redes sociais um vídeo com fotos de animais que teriam sido mortos a facadas e no qual conversava com um homem identificado como tutor de um desses cachorros.

A investigação, no entanto, não encontrou indícios de que animais tenham sido mortos na região.

Rafael dos Santos Silva, 22, foi agredido em rua de Suzano, na Grande São Paulo
Rafael dos Santos Silva, 22, foi vítima de linchamento em Suzano, na Grande São Paulo - Leitor

"Trata-se de um crime bárbaro, cruel. A divulgação dessa fake news acabou culminando na morte da vítima, dessa pessoa inocente. Na verdade, o Rafael tinha problemas psiquiátricos. Ele necessitava de um tratamento médico", disse à Folha o delegado Rubens José Ângelo, do Setor de Homicídios da Seccional de Mogi das Cruzes (SP).

Rafael deixou o Recife em 2020. Em Suzano, conseguiu trabalho como pedreiro. A mãe conta que o filho costumava depositar para ela uma parte do que ganhava e que os dois se falavam quase que diariamente, por ligações e mensagens. "Eu não quis [que ele saísse de casa], minha mãe não quis. Ele disse que era de maior, que iria ganhar dinheiro e me ajudar a comprar uma casa", diz Ariceli sobre a ida do filho para São Paulo.

Um ano depois, as conversas de mãe e filho foram ficando cada vez mais raras, ela conta. No ano passado, falas desconexas do jovem a preocuparam —ele dizia que estava escrevendo letras de rap, que iria ganhar dinheiro; também enviava à mãe vídeos em que se referia a cachorros como animais "impuros", "coisa do demônio", e ela pediu que o filho não fizesse esse tipo de publicação.

Rafael foi morto em 17 de dezembro, após a divulgação do vídeo do vereador Marcel da ONG (PTB) sobre o suposto ataque a três cães —não está claro em que data o vídeo foi postado. No vídeo, Marcel diz, sem citar Rafael nominalmente, que o suposto agressor de animais teria confessado os ataques.

"A gente foi atrás da pessoa e a pessoa só alega que cachorro é coisa do demônio. Tem vários vídeos na rede social dele dizendo que cachorro é coisa do demônio, ele prega isso. A gente foi atrás dele no local em que ele está trabalhando e ele já confessou que matou, que o animal é coisa do demônio", diz Marcel da ONG, no vídeo.

"Se ele tem algum problema mental, se ele é usuário de drogas, ele precisa ser encaminhado para a delegacia, familiar tem que ser comunicado, ele tem que ser tirado de circulação ou fazer algum tratamento. Ele também pode ferir um ser humano, uma criança", continua o vereador.

A Polícia Civil afirma que investiga Marcel da ONG por propagação de notícia falsa e incitação ao crime.

Procurada no último dia 9, a assessoria do vereador respondeu, por mensagem de texto, que divulgaria uma nota sobre o caso. Questionada novamente nesta segunda-feira (19), a assessoria de Marcel da ONG não respondeu à reportagem.

Após a publicação deste texto, a advogada Graziella Salti Bonini respondeu que não há qualquer envolvimento do vereador com o crime. Em nota enviada à Folha na nesta quarta (21), a defesa disse lamentar a morte de Rafael e repudiar o ato de crueldade contra o jovem. Afirmou, ainda, que Marcel da ONG prestou esclarecimentos no setor de homicídios de Mogi das Cruzes na última sexta (16) e que o vereador "não compactua com fake news ou outras ações que possam denegrir a imagem de pessoas".

A Câmara Municipal de Suzano, também procurada, disse que não há apuração interna sobre o caso. Página do vereador no site da Casa diz que "a causa animal é a sua principal bandeira".

Segundo a investigação, Rafael dos Santos da Silva foi espancado na estrada do Tanaka, em Suzano. O linchamento foi gravado, e as imagens mostram o jovem sendo agredido com socos, chutes, pauladas, pedradas e com uma pá. Mesmo caído no asfalto, um dos agressores grita que Rafael é exterminador de cachorro, e o jovem só tem forças para dizer que não é. Após todas as agressões ele ainda é atropelado por um carro.

Sete suspeitos foram identificados e presos na Operação Fake News, entre eles o homem que aparece no vídeo de Marcel da ONG como suposto dono de um cachorro morto —ele foi o último a ser detido, no dia 6 de fevereiro, na cidade vizinha de Rio Grande da Serra.

"Foi muita crueldade e só Deus sabe como hoje eu estou vivendo. Todo dia eu vejo ele no caixão, vejo ele falando comigo", disse a mãe de Rafael. O jovem foi enterrado no dia 20 de dezembro, no Recife. Foi com o dinheiro de uma vaquinha que a família conseguiu levar o corpo de São Paulo para Pernambuco.

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