Após uma vida sendo explorada como doméstica, boliviana vira ativista no Brasil

Diana Soliz é a primeira imigrante a se sindicalizar no país e tornou-se diretora de federação nacional

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São Paulo

A história de Diana Soliz no Brasil começou como a de muitos imigrantes bolivianos. Desempregada e mãe solo de uma criança, ela chegou a São Paulo de ônibus, sem documentos, para trabalhar —e morar— dentro de uma oficina de costura. Era 1996, Diana tinha 35 anos e cumpria jornadas exaustivas, sem direitos trabalhistas e sem nem saber que eles existiam para imigrantes como ela.

Trabalhadora doméstica desde os 14 anos, ela emendou alguns empregos nessa função em São Paulo, sempre sem carteira assinada, até que passou por uma cirurgia e teve a licença médica negada pela patroa.

Diana Soliz na praça Kantuta, no bairro do Pari, região central de São Paulo, ponto de encontro e celebração da cultura boliviana na capital paulista - Gabriel Cabral/Folhapress

Foi assim que ela chegou ao Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município de São Paulo (STDMSP). Nas reuniões, descobriu que havia outros imigrantes sendo explorados, como ela, nessa profissão.

Em 2017, Diana tornou-se a primeira imigrante sindicalizada no Brasil —algo que só foi possível com a nova Lei de Migração (13.445/2017), que permitiu a associação sindical, antes vetada.

Desde então, ela se dedica a conscientizar trabalhadoras domésticas, imigrantes e brasileiras, sobre seus direitos. Foi diretora do STDMSP por seis anos e atualmente faz parte da diretoria da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Também é conselheira suplente do Conselho Municipal de Imigrantes de São Paulo (CMI).

Junto com as entidades que representa, Diana participa de negociações coletivas com sindicatos patronais e de audiências públicas, coordena rodas de conversa para ouvir as demandas dos trabalhadores domésticos imigrantes e promove campanhas para conscientizá-los de que eles têm as mesmas garantias que os trabalhadores brasileiros.

Ela também organiza mutirões de atendimento, com assistência jurídica trabalhista, apoio para regularização migratória e encaminhamento para cursos de português, além de cursos de capacitação profissional. Algumas ações foram desenvolvidas com imigrantes venezuelanos que vivem em Roraima e Manaus, muitos deles vulneráveis à exploração no trabalho doméstico.

Em 2019, uma foto gigantesca de Diana estampou uma pilastra do elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, em exposição da fotógrafa Raquel Brust sobre diversidade na capital paulista. Hoje, aos 62 anos, ela se surpreende ao ver o quanto evoluiu —de uma vida de abusos no trabalho doméstico desde a adolescência até se tornar representante dessa categoria profissional em outro país.

Cheguei ao Brasil há quase 30 anos. Eu estava desempregada, com uma filha pequena, tinha acabado de sair do hospital depois de sofrer um acidente. Minha irmã gêmea, que trabalhava como cozinheira de uma oficina de costura em São Paulo, perguntou se eu não queria vir. Mandou dinheiro e eu vim.

Fiquei na dúvida se trazia minha filha ou não. Ela tinha quatro anos, eu não sabia o que encontraria ao chegar, acabei deixando-a com minha mãe.

Vim para ser babá de duas crianças, filhas do casal dono da oficina. Começava às 7h e não tinha horário para acabar, porque eles também costuravam e às vezes iam até meia-noite.

A oficina funcionava em uma casa alugada, e todo mundo dormia e comia ali mesmo. Eu ficava com minha irmã em um quartinho, e os costureiros, todos rapazes, dormiam em beliches. Era apertado, cheio de caixas, não tinha nem onde colocar as roupas. Era muito triste. Às vezes tirávamos folga aos domingos, mas só quando não tinha muito trabalho.

Depois de um tempo, conheci meu marido, um brasileiro. Nos casamos e decidi trazer minha filha para cá quando ela tinha oito anos. Parei de trabalhar para cuidar dela e, quando ela cresceu um pouco, voltei a ser babá.

Em 2008, arrumei emprego na casa de uma mulher que trabalhava em um banco internacional. Eu fazia de tudo: cuidava de dois meninos, limpava, cozinhava. Ela ganhava muito bem, morava numa casa boa, mas me dava só R$ 400 por mês, não pagava hora extra nem dinheiro para o transporte. Eu não fazia ideia de quanto era o salário mínimo [era R$ 415], não sabia que tinha direito a ter carteira de trabalho.

Fiquei seis anos lá, até que precisei fazer uma cirurgia e ficar afastada por dois meses. A cada 15 dias, a patroa me ligava e pedia para eu voltar porque não queria ficar sem empregada, mas não dava, eu estava me recuperando.

Depois que voltei, perguntei quando ela iria me pagar. Ela respondeu: "Pagar o quê? Você não trabalhou". Falei que eu tinha direito a uma licença médica, ela respondeu: ‘De onde você tirou isso? Você é imigrante’. Me disse para procurar outro emprego, mas não aceitei e fui buscar informação.

Soube que existia um sindicato e fui lá. Me explicaram que eu tinha, sim, direitos, chamaram minha patroa para ir lá, mas ela não foi e propôs que a gente "resolvesse isso entre nós". Disse que aumentaria meu salário em R$ 100 e assinaria minha carteira, mas eu não aceitei. Se o juiz falasse que tinha direito a R$ 50, eu iria querer esses R$ 50, porque era um direito meu. Abri um processo e acabei ganhando. Ela teve que pagar por todos aqueles anos que eu trabalhei sem carteira assinada.

Estou no trabalho doméstico desde os 14 anos. Minha mãe teve 16 filhos e eu fui praticamente criada em um orfanato com mais duas irmãs, porque meu pai bebia e não providenciava alimentação para nós.

Nesse orfanato, tínhamos alimentação, médico, escola. Mas eu era muito pequena, sentia falta da minha mãe.

Saí de lá aos 14 anos, para cuidar de uma criança e quase fui abusada pelo filho da patroa e pelo pai dele. Eu dormia no cantinho do quarto da despensa, em um papelão com um lençol. À noite eles ficavam tentando entrar, eu trancava por dentro. Eu era uma menina.

Um dia, fugi para a casa da minha mãe. A patroa disse a ela que me mandou embora porque eu tinha roubado um pacote de guardanapos, mas minha mãe não acreditou. Depois eu soube que isso [abuso sexual] já tinha acontecido antes naquela casa.

As pessoas não imaginam o risco que a gente corre. A patroa pode te tratar bem, mas às vezes é o marido, outro homem da família. Quando estava grávida de sete meses, trabalhava na casa de uma escritora que era um amor. Um dia, o marido dela veio para cima de mim quando eu estava arrumando a cama deles. Empurrei ele, desci as escadas, quis ir embora, mas a patroa me convenceu a ficar até o bebê nascer.

Jurei para mim mesma que minha filha nunca seria doméstica. Não pelo trabalho em si, porque é como qualquer outro, mas por medo de ela ser abusada, violentada. Hoje ela trabalha em um call center.

No sindicato, descobri que o imigrante é muito explorado. Não queria que outras pessoas passassem pelo que eu passei, então comecei a ir nas reuniões.

Fui a primeira imigrante sindicalizada do Brasil. Em 2017, criaram um Departamento Migrante e me chamaram para ser diretora. Organizamos cursos, palestras, ajudamos a providenciar documentos.

Muitos brasileiros não gostam, acham que queremos tudo de graça. Não, a gente trabalha, paga impostos. O imigrante não quer ser tutelado pelo governo, o imigrante quer trabalhar —e a maioria trabalha para caramba.

Não temos estatísticas sobre imigrantes no trabalho doméstico no Brasil, mas sabemos que há muitas bolivianas, paraguaias, haitianas, venezuelanas, angolanas, filipinas, congolesas. Algumas trabalham só por um prato de comida ou por moradia.

Muitas vêm com informação falsa do quanto vão ganhar, já chegam devendo o dinheiro da passagem, com o passaporte retido, são proibidas de sair, ameaçadas de deportação.

Uma vez, uma angolana contou, chorando muito, que era obrigada a comer no chão porque a patroa dizia que ela "era preta e não podia comer na mesa". Ela dormia ao lado da casinha do cachorro, só comia sobras. Isso me dói, e aconteceu há apenas três anos

A escravidão não acabou: está escondida. Tem pessoas que contratam imigrantes para não pagar direitos trabalhistas, achando que eles não vão reclamar. E, de fato, muitos ainda não têm consciência dos seus direitos no Brasil.

Fico feliz quando consigo orientar alguém. Quando me chamaram para a diretoria do sindicato, eu dizia: "Mas eu não sei nada, não sei falar, vou errar". Hoje participo de seminários, rodas de conversa, viajo direto para Brasília. Ainda não acredito que, aos 62 anos, cheguei até aqui.

Esta reportagem é publicada como parte do projeto "Towards Equality", uma iniciativa internacional e colaborativa que inclui 16 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

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