Descrição de chapéu Eu desisto Séries Folha

Recalcular decisões de vida é mais difícil para pessoas pobres e negras

Para especialistas, barreiras socioeconômicas e serem provedores para a família explicam por que jovens negros tendem a persistir em carreiras mesmo quando infelizes

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São Paulo

"Não foi positivo, mas foi necessário", define o fluminense Flávio Gomes, 25, ao lembrar da escolha de deixar a faculdade e o curso de fisioterapia ainda em 2020, quando a pandemia de Covid primeiro impactou o país.

A mãe estava doente e o dinheiro dele, somado com o da irmã, não era suficiente para bancar as contas da casa. Como ela estava mais perto de terminar o ensino superior, ele se voluntariou para deixar os estudos de lado e focar no trabalho.

Até se estabelecer em um emprego que permitisse voltar aos estudos, em 2023, foram dois anos longe da faculdade que escolheu. Teve de esperar a mãe melhorar de saúde, a irmã se formar e ele encontrar uma firma de horários mais maleáveis. Agora, restam mais dois anos de curso, até que possa sair da posição de auxiliar de faturamento para seguir a carreira que deseja.

Mulher negra de cabelos cacheados recostada em uma esquina de duas paredes
Vanessa de Souza, 34, é estudante de relações públicas na USP e, além de mulher negra, é diagnosticada com depressão e ansiedade severas - Danilo Verpa/Folhapress

A possibilidade de desistir de um caminho para focar em outro, mudar de ideia para algo que funciona melhor para si, é vista como uma janela positiva por psicólogos consultados pela Folha, que desassociam a ligação direta entre "desistir" e "fracassar". Mas, como no caso de Flávio, enfrenta obstáculos quando se observa a população mais pobre, e consequentemente negra, do país.

Pretos e pardos —10,2% e 45,3% da população do país, respectivamente— enfrentam o dobro do índice de pobreza dos brancos, que são 43,5% da população. Eles também são os que mais ocupam trabalho informal e com menores salários, segundo dados do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2022.

"As opções de desistência são muito mais comuns na classe média, estamos falando de um país em que a maioria gigantesca está na beira da pobreza. Quem entra no mercado de trabalho com algum grau de liberdade são poucos, as pessoas entram sem muita escolha, mudam de caminho mais por circunstâncias da vida do que por vontade ou sonho pessoal", afirma Mário Theodoro, doutor em Ciências Econômicas especializado em mundo do trabalho e relações raciais.

O entendimento é que, quanto melhor a situação socioeconômica, maiores são as possibilidades de escolha, inclusive para mudar de rumo e arriscar sem tanto medo do que o futuro guarda.

Um exemplo apontado por ele é das indicações dentro do mercado de trabalho formal: de acordo com dados do IBGE, 69% dos cargos de gerência são ocupados por pessoas brancas, que costumam indicar pessoas de seu círculo, geralmente também da classe média, aponta o economista.

Doutora em Psicologia Social, Jaqueline Jesus enfatiza que as escolhas de vida importantes pesam mais para grupos historicamente discriminados, como negros e indígenas. "Se eu entendo que tenho muita dificuldade de mobilidade social e poucos recursos, a tendência é tomar decisões que diminuam meu risco", completa.

Esse cenário é vivido pela publicitária Vanessa de Souza, 34, desde 2015, quando ingressou no curso de Publicidade e Propaganda na USP. Vinda de família pobre, ela se sentia deslocada e pouco confortável na convivência com os colegas, distantes da realidade que ela vivia.

Ela diz que seu histórico de dificuldades com saúde mental, envolvendo burnout, depressão e ansiedade diagnosticadas, foi agravado com as idas à universidade, combinadas a longas horas de trabalho. Souza considera que o melhor para seu bem-estar seria desistir do curso, coisa que ela já considerou muito, mas que descarta com medo das consequências na carreira.

"É muito difícil estar lá sem ter condições, me vi tendo que lutar para estar na universidade, os pensamentos de desistências são muito constantes. Mas permanecer faz com que eu tenha perspectiva de ascender socialmente, ajudar minha família a ter um futuro melhor", diz Souza. Ela acredita que um mesmo cargo no mercado de publicidade e propaganda exija "mais diplomas" de pessoas negras em comparação às brancas em mesma função para permitir crescimento na carreira.

Para que a população tenha mais poder de escolha, Theodoro e Jesus defendem que a saída ser por meio de políticas públicas para acesso à educação, especialmente, e melhor distribuição de renda na população. Aumentar a classe média, combatendo a pobreza, e diminuir o trabalho informal são fundamentais, segundo o economista.

"No Brasil o problema é termos milhares de pessoas para fazer qualquer serviço, por qualquer dinheiro, porque não têm outras opções. Numa sociedade onde você não tem oportunidade, é muito mais difícil desistir em prol de um objetivo de vida", afirma.

Na esfera individual, entre pessoas com poucas opções, Jesus acredita que a saída é sentar e mapear suas possibilidades, buscando "decisões esclarecidas" diante do cenário. Além disso, é importante conhecer muito bem sua comunidade e rede de apoio, aquelas pessoas que podem ajudar a enfrentar as dificuldades. No caso de Souza, foram os amigos mais próximos que a ajudaram a atravessar suas dificuldades na faculdade, ainda que não resolva toda a raiz profunda do problema.

Entender que o meio tem um impacto grande nas decisões individuais, reconhecendo o limite do que é possível decidir, pode ser relevante para recomeçar de maneira protegida e organizada mais para frente, aponta a psicóloga Ivani Oliveira, vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia.

Os casos de Vanessa e Flávio têm em comum uma crença na educação como forma de garantir mais chances de escolha no futuro, desistir ou não dos caminhos traçados dali para frente. Ao falar do assunto, o estudante de fisioterapia repete um ensinamento que sempre ouviu da mãe: "Não desiste do estudo porque, sem ele, a gente é obrigado a aceitar o mínimo sempre".

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