Após quase 200 anos, Brasil não sabe qual a linha que define terrenos envolvidos em 'PEC das Praias'

Plano estabelecia que terrenos de marinha deveriam ser demarcados em todo o litoral até 2025, mas meta passou para 2026

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São Paulo

Para determinar quais são seus territórios na costa brasileira, que podem ser alterados pela chamada "PEC das Praias", a União usa uma linha imaginária com a média das marés altas de 1831. Quase duzentos anos depois, no entanto, essa linha pode estar embaixo d’água em algumas regiões.

Mas isso é um chute, porque o país nunca chegou a demarcar de fato essa linha (conhecida como preamar médio), uma tarefa de alto custo para cobrir uma faixa com cerca de 48 mil quilômetros lineares. Segundo estimativa da Secretária de Patrimônio da União, responsável por administrar essas áreas, só foram demarcados até hoje cerca de 15 mil km.

Lançado há dez anos, o Plano Nacional de Caracterização tinha como um de seus objetivos a demarcação da linha de preamar médio em todos os estados litorâneos brasileiro. A meta inicial era que a tarefa fosse concluída em 2025, em São Paulo, mas o governo Lula (PT) adiou para 2026.

Segundo especialistas, o país ainda está distante de conseguir fazer isso esse cálculo para todo o litoral.

Fotografia feita de cima mostra, do lado esquerdo, o mar e as ondas e, do lado direito, prédios à beira mar. Na faixa de areia é possível ver guarda-sóis brancos espalhados pela praia.
A proposta de emenda à Constituição em discussão no Senado Federal tem gerado discussões sobre privatização das praias, mas, para que o acesso à orla seja controlado, lei federal deve ser alterada - Adriano Vizoni - 20.jan.2024/Folhapress

Uma lei de 1946 estabelece que a partir dessa linha de 1831, a União deve calcular uma distância de 33 metros para definir sua área de posse, chamada de terreno de marinha. Tudo que está dentro dessa faixa é dela, de recursos naturais a condomínios de luxo.

O que a PEC das Praias propõe é que esses terrenos de marinha passem para a mão que quem ocupa atualmente a área, mediante pagamento à União. Apesar de estarem no apelido da PEC, as praias e suas faixas de areia têm legislação própria e não poderiam ser afetadas, porque continuam sendo bens de uso público do povo, cujo acesso deve ser livre em qualquer direção e sentido.

A regra vale inclusive para praias que tiveram as faixas de areia alargadas oficialmente, como Copacabana, no Rio de Janeiro, e em Balneário Camboriú (SC). Mas os chamados terrenos acrescidos de marinha, como aterros para ganhar terreno, como o do Flamengo, no Rio, são afetados pela proposta.

Usar um critério fixo de 193 anos complica identificar exatamente quais são os lotes afetadas pelas regras.

Pesquisadores ouvidos pela reportagem apontam que o cálculo não é simples, e para cobrir os terrenos de marinha em todo o país são necessários mais esforços financeiros, humanos e computacionais do que os aplicados até aqui.

Um dos desafios é, por exemplo, medir com precisão o nível médio do mar antes de verificar a variação de marés, diz Mauricio Almeida Noernberg, professor titular do Centro de Estudos do Mar da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

"Você tem marés meteorológicas e a própria maré astronômica", afirma o pesquisador. Maré astronômica é aquela determinada pela influência gravitacional do Sol e da Lua, mais fácil de ser prevista. Já os ventos que costumam soprar contra a costa no sul do país e fazem a maré subir são exemplos dos efeitos meteorológicos sobre o nível da água.

Assim, medir o nível do oceano em diferentes pontos da extensa faixa costeira do país vai mostrar resultados diferentes.

Para Eduardo Bulhões, geógrafo marinho e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), a tarefa da demarcação não foi cumprida pela Secretaria do Patrimônio da União por uma série de dificuldades. "O plano nacional de caracterização mostra que até 2021 estavam demarcados cerca de 23% desses terrenos."

Em nota, o ministério afirmou que foram demarcados, nos três últimos anos, 11 mil km lineares de terrenos de marinha, "um aumento de 175% em comparação aos 4 mil km demarcados em 188 anos [1831 a 2019]", diz a pasta. "No ano passado, foram demarcados 9.000 km lineares de terrenos de marinha abrangendo todo o território do Amapá. Em 2024 também foi iniciado o processo de demarcação de terrenos de marinha nos estados do Nordeste."

A pasta diz que acertou com o Tribunal de Contas da União a mudança do prazo das metas de dezembro de 2025 para os "próximos dois anos", com a inclusão da demarcação de margens de rios federais e prioridade para a Amazônia Legal.

Segundo Bulhões, a legislação brasileira sobre os terrenos de marinha tem como foco a gestão do patrimônio público. É diferente, portanto, de faixas de segurança adotadas por países como Portugal e Grécia, com funções de preservação de ecossistemas e proteção contra o avanço do mar.

"Temos como problemas-chave o tamanho do litoral, a nossa capacidade e uma lei antiquada, que precisaria de muita discussão."

Hoje, o Brasil tem dois pontos verticais que servem de referência para medir o nível do mar, com dados de observação de marégrafos de 1949 a 1957 em Imbituba (SC) e de 1957 a 1958 no Porto de Santana (AP).

Segundo Noernberg, para melhorar a precisão dos cálculos para os terrenos de marinha é precisa de mais equipamentos do tipo, que são instalados e operados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Mas também é preciso avançar nas batimetrias, as medições da profundidade de oceanos, lagos e rios, fundamentais para prever o comportamento das marés nos diferentes pontos da costa.

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