Ex-cidade mais violenta do Brasil agora tem a polícia que mais mata

Mais da metade das mortes violentas registradas em Jequié (BA) em 2023 foram causadas por ações policiais, aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Salvador

A cidade de Jequié (370 km de Salvador) deixou o posto de cidade com maior proporção de mortes violentas do país em 2022 e no ano seguinte se tornou o município brasileiro com a polícia que mais mata.

O cenário é apontado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, estudo divulgado nesta quinta-feira (18) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A imagem mostra duas pessoas abraçadas, vestindo camisetas com fotos e mensagens de homenagem. A camiseta da pessoa à direita tem a mensagem: 'A dor da última despedida vem acompanhada de uma saudade sem fim. Kaka 10/05/23'. A camiseta da pessoa à esquerda também possui uma foto e texto, mas não é totalmente legível. Ambas as pessoas estão de mãos dadas.
Rosângela Vieira de Oliveira perdeu o filho Kailan Oliveira de Jesus em 2023. Ele trabalhava como ajudante de pedreiro e foi morto em uma ação policial - Rafaela Araújo - 21.jul.2023/Folhapress

Jequié registrou uma taxa de 46,6 mortes decorrentes de intervenção policial a cada 100 mil habitantes. Proporcionalmente, é maior taxa entre as cidades com população superior a 100 mil moradores.

A cidade de Angra dos Reis (RJ) aparece na sequência com uma taxa de 42,4 mortes por intervenção policial a cada 100 mil habitantes, seguida das cidades de Macapá (AP), Eunápolis (BA) e Itabaiana (SE).

Localizada no sudoeste da Bahia, Jequié tem 158 mil habitantes e enfrenta há ao menos dois anos um cenário de guerra entre facções criminosas, que resultou em bairros sitiados e uma legião de mães unidas pelo luto.

O tráfico na cidade era ligado à facção Comando Vermelho, mas em 2022 houve um racha no grupo criminoso, e dissidentes se aliaram ao PCC (Primeiro Comando da Capital). A cisão foi o início de uma guerra por territórios, que se refletiu nas mortes violentas na cidade.

As ordens para os assassinatos, em geral, partem de dentro da penitenciária de Jequié, classificada pelas autoridades como um "queijo suíço" pela quantidade de celulares que lá entram.

A cidade se tornou a mais violenta do Brasil em 2022 – foram 88,8 mortes para cada 100 mil habitantes. Ao todo, foram 141 assassinatos.

Em 2023, Jequié reduziu o índice de mortes violentas para 84,4, sendo superada por Santana (AP) e Camaçari (BA). Agora, ocupa a terceira colocação entre as cidades com maior proporção de mortes violentas intencionais, com 134 assassinatos em 2023.

A redução do número total de homicídios, contudo, veio acompanhada de um aumento da taxa de letalidade policial. Ao todo, foram 74 mortes em ações policiais, o que equivale a 55,2% das mortes violentas registradas na cidade no ano passado.

Em 2022, o patamar era em torno de uma morte em ação policial em cada quatro assassinatos. Foram 141 mortes violentas naquele ano, sendo que 38 foram registradas como autos de resistência.

"Alguns estados, como a Bahia, têm buscado responder à crise de segurança com mais letalidade. Mas existem outras estratégias de combater o crime organizado de forma mais efetiva", afirma David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O avanço da letalidade em Jequié acompanhou a tendência da Bahia, que também teve crescimento das mortes por intervenção policial no primeiro ano da gestão de Jerônimo Rodrigues (PT).

Em 2023, o estado registrou um total de 1.699 mortes causadas pela polícia, maior número absoluto dentre as unidades da federação. Comparado ao ano anterior, o crescimento foi de 15,8%.

Em bairros da periferia de Jequié, moradores reclamam sobre a violência das intervenções da polícia. Em reportagem publicada em agosto de 2023, a Folha ouviu relatos de invasão de casas de famílias sem mandado de busca, muros derrubados com granadas, ameaças e dezenas de jovens mortos em ações policiais. Parentes das vítimas falam em execução sumária, o que a polícia nega.

Rosângela Oliveira teve seu filho Kaylan, de 20 anos, morto dentro de casa em maio deste ano. Sem crimes pregressos, ele trabalhava como ajudante de pedreiro e tinha carteira assinada.

Jociane Santos Oliveira, 50, perdeu o filho Jean, 26, em uma ação da polícia. Maria Vânia Honorato teve o filho Alisson, de 22 anos, morto dentro de casa em meio a uma operação policial.

As mães das vítimas se uniram para denunciar ações violentas protestaram na Câmara Municipal de Jequié, que relatou a situação ao Ministério dos Direitos Humanos.

Elas cobram a implantação de câmeras nos uniformes dos policiais. Os equipamentos foram adquiridos pelo governo e começaram a ser utilizados em maio, a princípio com uso restrito a batalhões de Salvador.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia disse que "as forças de segurança atuam com rigor, dentro da legalidade e com firmeza contra grupos criminosos envolvidos com tráficos de drogas e armas, homicídios, roubos e corrupção de menores."

Destacou ainda que o governo tem feito investimentos em tecnologia, inteligência, equipamentos, capacitação e reforço dos efetivos para combater as organizações criminosas e que a Bahia registrou uma redução de 13% nas mortes violentas no primeiro semestre de 2024.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.