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Marcelo Rede

A vida de Jesus como fanfic

Os novos estudos ajudarão a entender melhor a relação entre os textos dos cânones oficiais e a multidão de escritos que ficou fora deles

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Marcelo Rede

É doutor pela Universidade de Paris 1-Panthéon-Sorbonne e professor de história antiga da USP

Na Bienal do Livro que ocorre nesta semana em São Paulo, os corredores estarão repletos de livros, autores e leitores. São volumes físicos e gente física, numa bela festa cultural. Há alguns anos, porém, um outro universo da literatura ganhou vida no mundo virtual da internet. São textos escritos por um outro tipo de autor, o fã, publicados em ambientes digitais. E a quantidade de seus leitores é gigantesca. É o mundo das fanfics ou "fan fictions".

O que define a fanfic é ser uma narrativa criada pelos fãs a partir de uma obra geralmente bem conhecida do público. Frequentemente, seus autores permanecem anônimos por trás de pseudônimos.

Quem pensa que se trata de um mero plágio erra feio. A fanfic é uma criação. Ela aproveita enredos, situações e personagens já consagrados para criar histórias que não existiam nos originais. Harry Potter, os heróis da Marvel ou Star Wars, tudo é matéria-prima para as fanfics.

A imagem mostra a silhueta de uma figura religiosa com cabelos longos e vestes brancas, de braços abertos, contra um fundo de fumaça colorida em tons de azul e amarelo. A iluminação destaca a forma da figura, criando um efeito dramático.
O tradicional espetáculo Drama da Paixão em Santana de Parnaíba (SP); a literatura bíblica, em particular do Novo Testamento, tem sido contada por fanfics - Prefeitura de Santana de Parnaíba - 31.mar.21/Divulgação

O estudo das fanfics tem se desenvolvido na academia. Mais recentemente, especialistas têm aplicado as teorias da fanfic na análise da literatura bíblica, em particular do Novo Testamento.

Os primeiros séculos do cristianismo viram uma grande criação e circulação de textos sobre a vida de Jesus. Eles podem ser divididos em dois blocos. Alguns foram oficializados pela tradição e pela igreja nascente, formando os evangelhos canônicos, considerados divinamente inspirados: Marcos, Mateus, Lucas e João.

Os demais foram deixados à margem, mas continuaram extremamente populares por séculos, desaparecendo depois, ou quase. As escavações arqueológicas recuperaram milhares de fragmentos de papiros e pergaminhos com esses textos, chamados de apócrifos.

Uma característica da fanfic é aproveitar as lacunas, desenvolvendo temas pouco explorados ou inexistentes nas obras originais. Este parece ter sido o caso mesmo entre os evangelhos canônicos.

Por exemplo, o nascimento e a infância de Jesus não aparecem no Evangelho de Marcos, considerado por muitos o mais antigo, que já começa com o batismo de Jesus por João Batista. Mateus e Lucas preenchem esse vazio, criando os episódios da anunciação, da fuga para o Egito, da visita dos magos e da sabedoria do jovem Jesus.

Mas foram os chamados apócrifos que deram asas à imaginação e criaram todo um universo de histórias inéditas. Não é à toa que também deram muita atenção à infância.

No Evangelho da Infância de Jesus de Tomé, o birrento menino toma uns petelecos do professor e puxões de orelha do pai, José. Também tenta lidar com seus poderes excepcionais, curando os doentes e feridos, ressuscitando os mortos, mas também cegando ou fazendo morrer os que ousaram contrariá-lo.

A lógica da fanfic também subverte as normas dos textos originais ou oficiais. No Evangelho de Judas, a personagem não é um traidor covarde, mas cumpre as orientações do próprio Jesus para que este seja sacrificado e, assim, cumpra sua missão.

Por vezes, esses escritos mostram um papel relevante das mulheres na vida e na propagação dos ensinamentos de Jesus. Algo bem diferente do domínio masculino dos 12 discípulos. No Evangelho de Maria Madalena, é esta discípula preferida de Jesus que recebe ensinamentos não revelados a nenhum outro seguidor, o que levanta a desconfiança e a indignação de André e Pedro.

Como nas fanfics modernas, esses textos antigos permitem que grupos subalternos expressem sem censura sua própria voz, aproveitando narrativas reconhecidas pelo leitor.

As comparações entre as fanfics e as narrativas bíblicas estão apenas começando. Os novos estudos ajudarão a entender melhor a relação entre os textos dos cânones oficiais e a multidão de escritos que ficou fora deles. Felizmente para nós, historiadores, um texto nunca nasce ou está sozinho, ele faz parte de uma teia de outros escritos.

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