Em aula noite afora, universitários exploram a madrugada paulistana

Curso de administração pública visa entender operação noturna da cidade 

Paulo Saldaña
São Paulo

Uma noitada de universitários costuma envolver balada e open bar. Mas, na última semana, um grupo de estudantes da graduação na FGV-SP se embrenhou na vida noturna da capital para uma investigação. O foco? A própria vida noturna. 

Uma nova disciplina do curso de administração pública da FGV de São Paulo, chamada Gestão Noturna de Cidades, foi o que levou a turma com 18 estudantes para a madrugada. Horário da aula: das 19h às 6h da manhã.

O objetivo era entender os desafios e potenciais da gestão pública de uma metrópole depois que o sol se põe e ver, ao vivo, como funciona a cidade no período em que a maioria dorme. A disciplina era optativa, mas as vagas ficaram lotadas. 

 

"Procurar entender o que as pessoas passam quando a gente dorme, quando a gente não enxerga, é uma questão de empatia", diz Isabelle Cavalheri, 20, aluna de administração de empresas. As vagas não eram exclusivas para a administração pública.

A instituição já promove há quase dois anos uma semana de imersão em que alunos têm a oportunidade de cursar disciplinas optativas e conhecer pessoalmente a operação de empresas ou órgãos governamentais. Mas, dessa vez, a imersão foi mais ampla. 

As atividades foram direcionadas, a cada aula, para aspectos diferentes da cidade noturna: a área de abastecimento (com encontros no Ceagesp e no Mercado Municipal), a assistência social (com visitas a albergue, por exemplo), o lazer e entretenimento e a mobilidade urbana.

Responsável pela disciplina, o professor Fernando Burgos conta que a ideia surgiu a partir de iniciativas de gestão noturna que já ocorrem em outras cidades como Nova York e Londres. A primeira inspiração é Amsterdã, que conta com a figura de um prefeito noturno.

"Há, pelo mundo, um movimento interessante de uma gestão pública que olha para a noite. E, como já ocorre em outras cidades, precisamos pensar na noite como parte integrante da cidade, e não um período em que todo mundo está dormindo", diz. 

A aula começa na sala e segue até o amanhecer em caminhadas pelas ruas, embarques no transporte coletivo, visitas a equipamentos públicos e entrevistas com as pessoas que vivem, trabalham ou se divertem à noite.

na rua

A mobilidade foi o tema escolhido quando a Folha acompanhou a turma, na noite de terça-feira e na madrugada de quarta (21). O secretário municipal de Mobilidade e Transporte, Sergio Avelleda, falou com a turma horas depois de uma forte chuva que castigou a cidade.

Ex-presidente do Metrô, Avelleda fez um panorama dos desafios de mobilidade na cidade, compartilhou com os futuros administradores públicos as agruras da função e detalhou a linha noturna de ônibus.

Criada em 2015 na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), a rede conta com 150 linhas conectadas para atender a vida noturna da cidade. Horas depois, os alunos veriam na prática a iniciativa.

"Precisamos ter mais esse contato entre a realidade e a academia, inclusive nas linhas de pesquisas", disse Avelleda após o fim da conversa com os alunos.

Munidos de guarda-chuvas, os alunos seguiram a pé da avenida 9 de julho, onde fica a FGV, até a rua Bela Cintra. Ali está a Central de Monitoramento da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), uma espécie de cérebro eletrônico do trânsito de SP.

Quase a 1h da manhã, o destino era o Pari. De táxi ou Uber, todos seguiram para a central de monitoramento da SPTrans, responsável pela gestão dos ônibus coletivos.

Enquanto, na tela, pontinhos coloridos em um mapa indicavam o posicionamento dos ônibus e rotas, os profissionais do órgão explicavam as demandas e dificuldades —como em eventuais quebras de ônibus ou em bailes funk na periferia em que a demanda aumenta muito.

Uma paradinha para um fast-food na Radial Leste e, pouco antes das 4h, os alunos embarcam no ônibus rumo à estação Corinthians-Itaquera, na zona leste. No coletivo, oportunidade para entender o outro lado das políticas públicas: os usuários.

Aluna do 2º semestre de administração pública, Gabrielly Sadovski, 18, sentou-se ao lado de um homem que voltava do trabalho em um restaurante, onde era gerente. E o papo rendeu.

"Ele me contou que, no horário que sai do emprego, precisa pegar um Uber até o local onde o ônibus noturno passa. Apesar disso, para ele o maior problema não é a estrutura do sistema, mas a segurança", diz ela, que também é moradora de Itaquera.

Sem trânsito —um lado positivo da madrugada—, o coletivo chega rápido à Itaquera. Antes da abertura da estação de metrô, uma grande quantidade de pessoas já espera ansiosa. Nos vagões, mais uma etapa para conversas e troca de informações.

"Para alguém entrar às 5h no metrô, outros precisam chegar às 3h pra trabalhar lá. E no dia a dia essas pessoas são invisíveis", diz Ana Beatriz Bretos, 22, no 8º semestre de administração pública.

Para eles, a experiência foi além do exercício de identificar lacunas administrativas. Condições de trabalho, falta de segurança, relações de gênero, por exemplo, surgiram entre as preocupações. 

Para as colegas Nathalia Bruni e Daphne Lilli, ambas de 19, ter essa experiência foi, de certa forma, ter contato com um retrato de desigualdade. "Todo mundo com quem eu falei no Ceagesp ou no metrô vive à noite por muitos anos porque não tem opção", diz Daphne.

"Pensei muito na esfera familiar, do impacto na vida da pessoas que precisam trabalhar à noite. Foi um exercício para pensar a administração pública como forma de melhorar a qualidade de vida das pessoas", disse Nathalia

"As flores do Ceagesp me lembraram muito as flores que estão na mesa da minha sala, e como as coisas são difíceis para muitas pessoas e fáceis para outras", completa.

Os alunos tiveram que escrever um relatório integrado com um diagnóstico e soluções. O documento será encaminhado ao prefeito.

Além dessa prática, o professor Burgos ressalta a questão de experiência. "O principal ganho foi de sensibilidade". Como diz o ditado, a noite é boa conselheira.

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