Longe de polarização nacional, estados articulam ações educacionais entre si

Migração de secretários contribui para cooperação; MEC perde protagonismo, avalia especialista

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São Paulo

Escola sem partido contra liberdade de cátedra, cartilha de alfabetização versus construtivismo, Paulo Freire nunca ou Paulo Freire sempre. Dominado por temas como esses, o debate nacional sobre educação não parece ter hoje muito mais que oposição e conflito.

Longe do ringue das redes sociais, porém, a questão tem sido tratada de forma mais desarmada. Sem alarde, governos estaduais promovem um intercâmbio cada vez maior de políticas educacionais

A troca de experiências é resultado de fatores como migração de profissionais, consolidação de bons exemplos e atuação nacional de organizações não governamentais. A gestão Bolsonaro também contribui indiretamente ao priorizar a guerra ideológica na educação em detrimento da gestão, dizem especialistas.

Para Priscila Cruz, presidente da organização Todos pela Educação, as constantes trocas de equipe do MEC (Ministério da Educação) e a demora da pasta em definir políticas para a área acabaram por deixar um vácuo que foi logo preenchido. 

“As pessoas responsáveis pela oferta educacional perceberam rapidamente uma perda de protagonismo do governo federal”, afirma. “Esse espaço tem sido ocupado pelo Congresso e pelos estados, que pararam de esperar o MEC e passaram a olhar para o lado.”

O diálogo acontece em encontros presenciais no Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação) e também no dia a dia. 

Secretária-executiva da pasta de Alagoas, Laura Cristiane de Souza conta que participa de dois grupos no Whatsapp: o do conselho e outro só de gestores do Nordeste. “A gente sempre conversa, tira dúvida, compartilha problemas em comum”, diz.

Turbinadas por essa maior facilidade de diálogo, algumas iniciativas educacionais têm se tornado espécies de franquias. Entre elas, a marca mais valorizada hoje em dia é a do Ceará.

Com uma das menores rendas médias do país, o estado se destacou por seus resultados na alfabetização. Uma das chaves do sucesso na área foi a parceria desenvolvida com os municípios, principais responsáveis pela etapas iniciais da escolarização.

Para apoiá-los, o governo cearense desenvolveu um conjunto de medidas que incluem material didático estruturado, formação de professores e um incentivo financeiro: as cidades que avançam mais recebem uma fatia maior do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), para usar em qualquer área da administração.

O modelo foi adotado neste ano em Pernambuco e está em fase de implantação ou estudo pelos governos de Alagoas, Amapá, Espírito Santo e São Paulo —chefiados por MDB, PDT, PSB e PSDB.

Outro modelo que tem sido estudado e replicado no país é do ensino médio de Pernambuco, fortemente calcado no tempo integral, no qual o aluno escolhe disciplinas optativas e constrói projetos.
O estado foi o único, ao lado do Amazonas, a cumprir a meta do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) para a etapa em 2015.

Entre os que se inspiraram na ideia estão o próprio Ceará e o Espírito Santo, que alcançou as melhores médias em português e matemática na avaliação mais recente, de 2017. Os resultados hoje inspiram São Paulo, que pretende ampliar o ensino integral.

A rede paulista também tem um exemplo de política educacional para exportação. A iniciativa dos clubes juvenis, que reúnem estudantes com interesses comuns em áreas como cultura e esporte, serviu de exemplo para Alagoas —que, por sua vez, criou programa de seleção de dirigentes de ensino entre os professores das melhores escolas, medida adaptada por dois governos.

As trocas de experiências educacionais são potencializadas pela migração de profissionais. Só neste ano, a janela de transferências na área movimentou cinco postos. 

Em São Paulo, a gestão João Doria (PSDB) levou à secretaria de Educação Rossieli Soares, ex-ministro e ex-secretário do Amazonas. Para secretário-executivo, foi trazido Haroldo Corrêa, ex-titular da área no Espírito Santo.

Em Goiás e Minas, processos seletivos para a escolha de secretários levaram às pastas de educação Fátima Gavioli, que já tinha comandado a área em Rondônia, e Julia Sant’Anna, profissional com passagem de oito anos pela secretaria da Educação do Rio de Janeiro.

Do seu estado, conta Julia, ela trouxe a experiência de verificação dos cardápios da merenda e de controle da frequência escolar ao longo do ano letivo para detectar alunos em vias de evasão. No sentido contrário, espelhou-se no Paraná e no Espírito Santo para o transporte escolar de Minas.

As trocas envolvem viagens de técnicos de um estado a outro. Há ainda ex-servidores das secretarias de educação que passaram a trabalhar em ONGs e ajudam a fomentar o intercâmbio educacional pelo país. É o caso de alguns que passaram pelo Ceará.

“Como têm capilaridade, [as ONGs] acabam por disseminar várias experiências”, diz Márcio Brito, secretário executivo de Cooperação com os Municípios da pasta cearense.

Além de trazer boas ideias, Claudia Costin, pesquisadora da FGV e colunista da Folha, aponta outra razão para secretários compartilharem problemas e soluções com colegas de outros estados.

“Muitas vezes o gestor se sente isolado porque tem questões que não pode ou não quer discutir com sua equipe —por exemplo, quando tem que substituir alguém ou está sob pressão política. É importante nesses casos ouvir alguém com experiência que não esteja diretamente envolvido na questão e possa manter a confidencialidade”, diz.

Atualmente, Claudia é mentora de quatro secretários estaduais. A medida faz parte de uma tendência de profissionalização do cargo que tem sido vista em parte do país, diz Fred Amâncio, secretário de Educação em Pernambuco e vice-presidente do Consed.

Para a presidente do Todos pela Educação, porém, é preciso ver com cautela esse processo. “Em geral os secretários nomeados logo após a eleição são os mais técnicos, mas isso muitas vezes muda ao longo do mandato”, diz.

Prova disso é o recente caso do agora ex-secretário de Educação do Distrito Federal, Rafael Parente. Outro gestor com experiência em outro estado —no caso, a rede municipal do Rio—, ele deixou o posto na capital federal após discordar da decisão do governador, Ibaneis Rocha (MDB), de impor o modelo militar a escolas que haviam se manifestado contra a mudança. Em seu lugar, entrou um nome ligado ao mundo jurídico.

Atuação de ONGs ajuda a disseminar políticas

Além dos intercâmbios de experiências entre gestores, organizações não governamentais também têm contribuído para a disseminação de políticas educacionais Brasil afora. 

Nesses casos, o suporte técnico ajuda as redes a poupar o tempo que seria gasto em pesquisa de soluções, diz Inês Kisil Miskalo, gerente-executiva de Educação do Instituto Ayrton Senna.

O instituto tem atuado muito com projetos de gestão da alfabetização e educação integral.

Já a formação de profissionais locais ajuda a tornar tais projetos permanentes nas redes.

Outras entidades com atuação na educação dos estados, em áreas como alfabetização, gestão e empreendedorismo, são Fundação Lemann, Fundação Telefônica Vivo, Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, Instituto Unibanco Itaú Social.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que dizia versão anterior deste texto, o nome do ex-secretário de Educação do Distrito Federal é Rafael Parente, não Renato. O erro foi corrigido.
 

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