Alunos formam grupos em escolas e universidades para falar melhor em público

Iniciativa parte tanto dos próprios jovens como das instituições de ensino; prática é comum nos EUA e Reino Unido

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São Paulo

"Quem vê a gente escolher o sabor da pizza às vezes se assusta", diz Matheus Franciscão, 21. Estudante de economia da USP, ele integra um grupo da universidade criado para ajudar os alunos a desenvolver técnicas de debate

O repertório de argumentos e estratégias dos integrantes é tão grande que se manifesta até em decisões prosaicas como o que comer. Mas que ninguém se assuste: não é briga. Confrontar ideias é o que eles mais gostam de fazer.

Comuns nos Estados Unidos e no Reino Unido, grupos de debate têm se disseminado no ensino superior brasileiro. 

De 2010 até hoje, ao menos 19 surgiram em universidades de 14 estados, conta Renato Ribeiro, fundador do Instituto Brasileiro de Debates (IBD).

O mais antigo é o da UFC (Universidade Federal do Ceará). Há ainda outros em instituições como a UFMG (federal de Minas), UFRJ (Rio de Janeiro) e UFSC (Santa Catarina).

Na capital paulista, o projeto USP Debates surgiu em 2014 por iniciativa de alunos, para troca de ideias. Há dois anos, o grupo começou a participar de competições na área e já tem alguns campeões.

Para desenvolver argumentação e oratória, os alunos se encontram duas vezes por semana. O modelo utilizado por eles, um dos mais usados nos campeonatos acadêmicos, é o chamado Parlamento Britânico.

Nele, as regras são inspiradas nos acirrados embates verbais que ocorrem semanalmente na Câmara dos Comuns.

Um tema é colocado, e os alunos são sorteados para defender uma ou outra posição —independentemente de ser aquela em que eles acreditam.

O treinamento inclui técnicas de oratória e o estudo de assuntos relevantes que podem vir a ser discutidos. A qualidade da argumentação é mais importante do que a retórica, dizem os integrantes.

Além disso, o grupo leva o trabalho para escolas públicas e particulares interessadas em replicar a ideia.

As habilidades desenvolvidas nos encontros aparecem também na vida pessoal, conta Alice Bertoni, 21, aluna de relações internacionais. "Estamos acostumados a debater com lógica. Então, se eu digo para a minha mãe que quero fazer uma coisa, ela não pode simplesmente falar 'não pode porque eu não quero'", afirma. 

Alice coleciona títulos como o do Mundial de Debates em Língua Portuguesa, na categoria iniciados (que treinam há até um ano).

O meio, porém, ainda é predominantemente masculino, o que impõe desafios adicionais às participantes. "Se eu e um homem falamos a mesma coisa, às vezes sou percebida como agressiva, e ele, como assertivo", exemplifica. Negros e pessoas de baixa renda também são subrepresentados, diz.

Transportar o aprendizado do mundo dos debates para as outras instâncias da vida é um desafio, contam integrantes dos grupos. Nem todos estão no clima de discussão lógica, com argumentos e sem ataques ao interlocutor.

Uma oportunidade para aprender isso foram as eleições do ano passado. "O USP Debate era um dos poucos espaços que encontrava de diálogo com pessoas que pensavam diferente, em que era possível conversar com calma e argumentos pertinentes", diz Yasmin Fauze, 22, estudante de direito.

Para o fundador do IBD, a polarização é um atrativo para a área, porque é nos bastidores das sociedades de debates que as pessoas se sentem mais confortáveis para manifestar seus pontos de vista.

Indício importante disso, diz ele, é que, de 2017 para 2018, o número de duplas no campeonato nacional de debates saltou de 44 para 80.

"Em política é muito fácil perceber como, em geral, as pessoas são tão emocionalmente apegadas aos seus argumentos", diz Alice.

Ela menciona algo que parte de uma geração ainda mais nova também percebeu.

"Debate não é questão de ganhar ou perder. É ouvir a ideia do outro, expor a sua e aí ou mudar sua posição ou deixar ela ainda mais forte", diz Maria Victoria de Queiroz, 15.

Aluna da escola Móbile, na zona sul de São Paulo, ela fez uma disciplina optativa sobre conceito e prática de debates criada há dois anos no colégio por demanda dos alunos.

Entre os recursos que ela conta ter desenvolvido desde então estão o de anotar o que o interlocutor diz e o de fazer no papel um esquema dos conceitos que vai usar na sua argumentação.

Com isso, aqueles brancos que às vezes davam quando Maria Victoria levantava a mão ficaram cada vez menos frequentes, relata. 

A Móbile é uma das escolas paulistas que incorporou a expressão oral ao currículo. Além da disciplina optativa de debate, ela também oferece, há mais tempo, um curso para ajudar a preparar alunos do ensino médio para vestibulares que têm uma etapa oral, como os da FGV e do Insper.

"Ao longo dos anos, temos momentos de debate e apresentações na escola, mas, como a gente faz muitas redações, ficamos mais acostumados à escrita", diz o aluno Pedro Fuoco, 17.

Alunos em atividade de práticas digitais da escola Móbile
Alunos em atividade de práticas digitais da escola Móbile; colégio tem disciplinas voltadas à expressão oral - Keiny Andrade - 4.set.2019/Folhapress

"A expressão oral é fundamental para a profissão", diz Roberto Dias, coordenador da graduação de direito da FGV em São Paulo, uma das que têm o exame oral. Também por isso o curso tem buscado ampliar os momentos em que os estudantes tomam a palavra, inclusive na apresentação de eventos.

É importante lembrar, porém, que expressão oral não significa só falar bem. Envolve também escutar, diz Silvia Letícia de Andrade, coordenadora pedagógica do ensino médio da Castanheiras. 

A escola trabalha com a oralidade ao longo do currículo e também em momentos específicos. Entre os aspectos abordados estão preparação de roteiro de fala, escolha de vocabulário, entonação e volume de voz.

Em linha com a tradição britânica de debates, o colégio St. Paul's, no Jardim Paulistano, também trabalha com o tema. Entre as iniciativas está a constituição de grupos nos quais o professor ajuda os alunos a preparar um discurso sobre algum tema escolhido por eles. O do ensino médio existe há 12 anos. O de ensino fundamental surgiu há dois.

No Santa Maria, na zona sul, a capacidade argumentativa é exercitada em evento anual no qual são simulados eventos históricos. Participantes são convidados a representar países ou personagens históricos, defendendo seus interesses.

Outra iniciativa nesse sentido são os debates no modelo da ONU, que acontecem em diversas escolas, como o próprio St. Paul's, o Dante Alighieri, nos Jardins, e o Santa Cruz, em Alto de Pinheiros.

O projeto também é realizado em algumas escolas públicas do estado e da prefeitura em parceria com o escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo.

Além da abordagem em projetos e disciplinas específicas, o aprimoramento de habilidades ligadas à fala, que ganhou um eixo próprio na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), também é feito de forma transversal, ao longo das disciplinas, dizem as escolas.

"Entendemos a habilidade oral dentro de um contexto que envolve um trabalho de pesquisa e um contexto de formulação de perguntas interessantes", diz Marina Nunes, diretora de ensino médio do Santa Cruz.

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