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Termômetro ideológico do Enem irritaria Bolsonaro pré-governo

Prova trouxe questões sobre desmatamento, refugiados, agrotóxicos e ataques a minorias religiosas de matriz africana

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Brasília

Se tivéssemos outro grupo político no poder, Jair Bolsonaro bem que poderia criticar o Enem 2019 por trazer questões esquerdistas. O exame deste ano abordou diversos temas geralmente associados pelo presidente e seus apoiadores como pautas da esquerda, apesar de terem sido recepcionados sem  questionamentos desta vez.

Constaram no Enem de 2019 perguntas sobre desmatamento (item 65, prova amarela), refugiados (item 11), impactos negativos dos agrotóxicos (82), ataques a minorias religiosas de matriz africana (57) —todos são conteúdos de grande importância, mas, na narrativa bolsonarista, estariam a serviço de projetos políticos de esquerda.

A ausência inédita de alguma questão sobre a ditadura militar não é trivial. Entretanto, até texto do geógrafo marxista David Harvey caiu na prova (67), assim como citações a Michael Foucault (84), Hannah Arendt (86), e também a Adam Smith (58) e Santo Agostinho (64).

Ao responder sobre a ausência de referência à ditadura, o ministro Abraham Weintraub disse no domingo (3) que a preocupação foi fugir de polêmicas —justificativa que ecoa a do presidente do Inep, Alexandre Lopes. Mas o argumento é descolado da realidade.

Polêmicas não surgiram do Enem em si. Em casos recentes, itens da prova tornaram-se alvo após ataques de políticos como Bolsonaro e outros conservadores, que relacionam a esquerda a qualquer tema fora de suas agendas.

Assim, falar de direitos humanos (questão 52) é de esquerda, mencionar homossexualidade em uma prova é esquerdismo e doutrinação (além de pecado), citar feminismo ou feministas seria também um ataque à família. No passado, menções à filósofa Simone de Beauvoir e a um dialeto falado por gays causaram a ira de Bolsonaro.

Esses ataques configuraram-se mais como uma promoção estridente de visões radicais e religiosas do que como observações de problemas legítimos da prova. No mesmo ato demoniza-se a esquerda e várias discussões e temas.

Seria polêmica a proposta da redação deste ano, “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”? O ministro e o presidente acharam que não, e o tema foi elogiado por professores. Mas teve seguidora do guru Olavo de Carvalho que discordou.

Para Bruna Becker, que já atuou como assessora do MEC neste ano, o uso da palavra democratização é “gíria esquerdista”. Nas redes sociais ela diz que esse “conceito esquerdista” forçaria “o aluno a esquerdar”.

Desta vez, no entanto, a opinião não encontrou ressonância na militância de direita.

A preocupação com o conteúdo da prova sob Bolsonaro cresceu após o governo criar, no início deste ano, uma comissão para fazer um pente fino ideológico nas questões. Nunca se divulgou os critérios de fato dessa análise, tampouco seu resultado. 

A ausência inédita da ditadura no atual formato da prova levanta dúvidas sobre se a ideia do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi acatada. Em janeiro, o filho do presidente defendeu pelas redes sociais uma revisão histórica sobre o regime militar em materiais escolares.

O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, refere-se à ditadura como “revolução” e já elogiou torturador. O filho deputado foi mais longe e sugeriu a reedição do AI-5, ato de 1968 que permitiu perseguições, fechamento do Congresso e outros ataques às liberdades civis, mas acabou sendo desautorizado pelo pai. 

Feita as ponderações, como acerca da invisibilidade do regime militar, o exame seguiu o padrão de anos anteriores, trazendo uma considerável variedade de assuntos atuais e relacionando-os com conceitos do currículo.

As questões usadas no Enem fazem parte de um banco de itens e provavelmente já estavam prontas antes do início desta gestão. O governo federal cumpriu seu dever e entregou o Enem sem falhas evidentes até agora. Mesmo depois de problemas com a gráfica e troca-troca de equipes no Inep. 

Isso não é pouco dada a complexidade do exame —o Enem ainda não acabou, e no próximo domingo (10) os candidatos enfrentarão outra bateria de provas, agora com questões de matemática e ciências da natureza.

Sem tirar o mérito das lideranças políticas, o sucesso até agora se deve à expertise que o corpo técnico do Inep acumulou ao longo dos anos. A ver como essa expertise sobreviverá nos próximos anos quando ficará mais claro o peso das orientações ideológicas nas diretrizes educacionais.

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