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Jovens podem sair do isolamento com mais autonomia para estudar, diz astro do ensino online

Em entrevista, Salman Khan recomenda rotina, foco em prioridades e atenção à saúde mental no período do coronavírus

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São Paulo

Ele começou com lições em vídeo para ajudar uma prima em dificuldade na escola e hoje comanda uma das maiores plataformas de educação online do mundo, com conteúdo em mais de 30 línguas diferentes, inclusive o português.

Engana-se, porém, quem pensa que o matemático americano Salman Kahn tem tirado de letra aquilo que muitos pais têm se desdobrado para fazer em tempos de pandemia de coronavírus: dar conta da educação das crianças em meio à rotina de trabalho e de atividades domésticas.

Retrato de Salman Khan, criador da Khan Academy, plataforma de educação online
Salman Khan, criador da Khan Academy, plataforma de educação online - Divulgação

Com três filhos em idade escolar, Khan conta em entrevista à Folha que enfrenta dificuldades como qualquer um, mas que sua experiência no ensino digital também permite que ele compartilhe conselhos para famílias, alunos e professores sobre o que tem dado certo. Alguns deles: siga uma rotina, comece pelo básico, seja gentil consigo mesmo. E, especialmente para os pais: mantenham a sua saúde mental.

Para Khan, as crianças têm muito a perder com escolas fechadas, da socialização ao próprio conhecimento, no caso das mais pobres. Mas podem sair com algo a mais disso tudo: autonomia para aprender.

Isso não vai acontecer se governos e empresários não atentarem à importância de democratizar o acesso a recursos digitais; no entanto, nunca uma crise chamou tanta atenção para isso, diz o matemático.

Como parte das ações que tem feito no mundo todo diante da pandemia do coronavírus, a Khan Academy, sua organização, que já oferece todo o conteúdo de forma gratuita, discute com secretários estaduais e municipais de Educação no Brasil uma estratégia para ajudar a manter o aprendizado durante o período de interrupção das aulas. A plataforma já conta com diversas aulas em português com exercícios e disponibilizará também planos de aulas e de estudos detalhados.

Com a pandemia de coronavírus, famílias do mundo todo refletem sobre temas com os quais você trabalha há anos, como ensino a distância e capacidade de concentração das crianças. Como tem sido sua experiência pessoal em conciliar o seu trabalho e a educação dos seus filhos? São três, de 5, 8 e 11 anos. Não é fácil, especialmente no caso do menor, mas sou relativamente sortudo. Além de mim e da minha mulher, minha sogra também vive com a gente, e temos um jardim. A ironia é que meu trabalho ficou muito mais atribulado nesse período em razão do fechamento de escolas.

E na Khan Academy, o que mudou? O que vocês podem oferecer neste momento além do que já faziam? Há mais de dez anos atuamos para que crianças e jovens aprendam no seu próprio ritmo e damos aos professores informação sobre os pontos em que seus alunos precisam de ajuda. Agora, elaboramos agendas para estruturar o dia dos estudantes, prevendo atividades acadêmicas, intervalos e atividade física. Elas foram traduzidas inclusive para o português. À medida que fica claro que o fechamento de escolas pode se prolongar por meses, começamos a pensar em como podemos ajudar escolas, estados e países a pensar em planos de aprendizagem.

Alunos pobres têm muito menos acesso a recursos digitais que os demais. Como assegurar que a desigualdade educacional não aumente neste contexto? Temo que, no curto prazo, o acesso desigual ao ensino digital será uma fonte de desigualdade. Mas o ensino online é melhor do que não fazer nada. Se não houvesse recursos gratuitos como a Khan Academy, as famílias de mais alta renda encontrariam recursos pelos quais podem pagar, e uma grande proporção da população ficaria sem nada. Agora, em todo o mundo, temos visto gente que pode fazer a diferença: operadoras de telefone, pessoas que estão enviando aparelhos aos estudantes que não têm. Então, no longo prazo, espero que a crise seja uma catalisadora para que a indústria, os sistemas educacionais e o governo percebam que acesso à internet não é algo legal de ter, é algo obrigatório —e não só para o aprendizado mas também para a saúde mental nestes tempos de distanciamento social.

De uma hora para a outra, professores tiveram que virar especialistas em ensino virtual. Muitos, porém, não têm treinamento para isso nem talento para a comunicação em vídeo. Que conselhos daria a eles? Como se diz, a necessidade é a mãe das invenções. Crianças podem aprender com vídeos no seu próprio ritmo, mas elas também ficam presas em alguns pontos, precisam de apoio e motivação do professor. Eu diria: não planeje em excesso e torne tudo o mais interativo possível. Se você tiver só uma caneta e um papel, pode escrever um problema, mostrá-lo pela câmera do seu telefone ou computador e resolver junto com seus alunos. Certifique-se de que haja tempo para as perguntas deles.

Na sala de aula é fácil para o professor ver que o estudante não está prestando atenção ou não está fazendo uma tarefa. No mundo online, como garantir o engajamento dos alunos? É mais difícil. Em algumas plataformas de videoconferência, é possível ver todos os estudantes ao mesmo tempo e observar o quão engajados eles estão, mas a própria natureza do que está acontecendo agora põe muito mais pressão sobre os alunos e os pais. Isso porque as videoconferências não duram cinco horas, como um dia normal de aula, mas às vezes só uma hora por dia. No resto do tempo, os estudantes têm que fazer as suas tarefas por conta própria. Talvez alguém verifique depois se elas fizeram. É mais difícil, porque no sistema tradicional é diferente, a criança pode sentar, esperar e perguntar: “o que eu faço agora?”. O lado positivo, a esperança, é que essa habilidade de ter mais autonomia pode ser desenvolvida. É uma habilidade importantíssima, e irá ajudar os estudantes ao longo de toda a vida deles.

E os pais, que habilidades devem desenvolver para auxiliar seus filhos nesse processo? Pais se preocupam que o tempo das crianças em casa seja produtivo. Mas, considerando-se o estresse em razão do vírus, do confinamento e dos efeitos na economia, a primeira coisa importante é eles cuidarem da sua saúde mental, até porque, se ficarem muito estressados, isso irá se refletir nas crianças. O segundo passo é focar nas coisas mais simples. Se o seu filho consegue ter 40 minutos de matemática e 40 minutos de leitura por dia, e talvez também um tempo de escrever alguma coisa, é o suficiente, porque esses são os fundamentos de aprendizagem. E não se frustre se as coisas não funcionarem perfeitamente na primeira ou na segunda semana. Tivemos alguma dificuldade com meu filho de cinco anos, mas, agora [depois de três semanas isolados], também ele está pegando um ritmo.

Como deve ser a rotina dos alunos nesse período de escolas fechadas? Eles devem acordar no horário em que já estavam acostumados? Tudo bem ver a aula online de pijama? Quanto mais for possível manter a rotina, melhor: acordar na hora que costuma acordar, tomar café da manhã, se vestir, tomar um banho. É bom ter um espaço pré-determinado na casa onde eles irão estudar, fazer o que têm de fazer e, a partir de um certo horário, como o almoço, não devem mais se preocupar com as tarefas da escola. É muito importante que tenham momentos para o lazer.

Crianças menores têm menos autonomia para aprender sem um professor por perto. Como pai de uma criança de cinco anos, que dicas poderia dar aos pais com filhos dessa idade? Eu seria hipócrita se dissesse que já sei tudo sobre isso. Mas faço um paralelo com crianças ainda menores. Todos temos que fazer nossos filhos dormirem a noite toda. É difícil, porque eles choram e temos que ser consistentes para construir um padrão, mas eles aprendem. O mesmo vale para uma crianças de três a seis anos: dê a ela um padrão. Sente-se com ela e pergunte: qual atividade da escola você quer completar? Elas já têm idade para ter uma opinião, e adoram completar um objetivo. Detesto dizer, mas aprendemos a praticar um pequenos subornos com o nosso mais novo, ainda que inofensivos. Toda vez que ele completa um objetivo [a escola passa uma lista de objetivos todo dia], damos uma bolinha de M&M. Isso o motiva, e tudo bem, porque no final do dia ele não vai receber tanto açúcar assim. É um equilíbrio entre não aprender e comer muito açúcar [risos]. Além disso, sei que todas as famílias são muito sensíveis ao tempo de exposição das crianças a telas, mas, no atual cenário, tudo bem se elas virem um pouco mais de desenho do que o normal, porque isso vai ser bom para a sanidade mental do pai e da mãe.

O que acha que as crianças mais vão perder e mais vão ganhar nesse período? Há muitos pontos negativos: as crianças estão com saudades de seus amigos, e não poder sair de casa é uma grande perda. A depender de quão equipadas estão suas escolas ou suas famílias, muitas deixarão de aprender muita coisa. O que pode ser positivo é se construirmos hábitos de aprendizagem em casa. Nas férias, muitas crianças de alta renda podem continuar aprendendo ao viajar para diversos lugares e participar da programas de estudo, e isso tem sido uma fonte de desigualdade. Mas, todas desenvolverem autonomia e construírem hábitos para seguir aprendendo por conta própria, isso terá efeito quando as escolas reabrirem.


SALMAN KHAN

Fundador da Khan Academy, plataforma gratuita de estudos na internet. É matemático e foi analista de fundos.

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