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Mulher, negra e aluna de engenharia da USP: 'Pensava que não era o meu lugar'

Júlia Sanches, que hoje faz mestrado, está em grupo de trabalho que elabora política de cotas para a pós-graduação; leia relato

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São Paulo

"Sou uma mulher preta, na USP, fazendo engenharia. Sou diferente das outras pessoas da Poli, e muitas vezes pensei: ‘Não era para eu estar aqui, esse não é o meu lugar’", conta Júlia Sanches, 27, graduada e agora mestranda em engenharia de minas da Escola Politécnica da universidade.

Ela é uma das integrantes do recém-criado Grupo de Trabalho de Políticas Afirmativas e de Inclusão na Pós-Graduação da USP, que definirá políticas de cotas para os cursos de mestrado e doutorado.

Júlia Sanches, 27, mestranda em engenharia de minas da Escola Politécnica da USP - Zanone Fraissat/Folhapress

Em depoimento à Folha, ela relata a dificuldade de se sentir pertencente no ambiente acadêmico e de ser respeitada como pesquisadora. Leia a seguir.

"Sou de São José do Rio Preto [interior de SP] e estudei a vida inteira em escola pública. Quando entrei na graduação, a USP não tinha cotas, só um acréscimo de notas no vestibular [para alunos de escolas públicas e para pretos, pardos e indígenas]. Para mim, no entanto, ainda mais complicado do que entrar na faculdade foi permanecer.

Pensei em desistir. Não me sentia pertencente, pensava: ‘Não era para eu estar aqui, esse não é o meu lugar’.

Fiz engenharia de minas, sempre gostei do curso e isso me fez persistir. Mas havia também dificuldades pedagógicas. Nas disciplinas que demandam fundamentos que se aprendem no ensino médio e no fundamental, tive dificuldade, mesmo sendo boa em matemática. Financeiramente, a permanência também não foi fácil. Eu dava aulas particulares, fazia iniciação científica e tinha uma bolsa da USP, além da ajuda dos meus pais.

Consegui me formar e logo entrei no mestrado. Na Poli não tem cotas para a pós. Tentei dar início a esse debate porque sou representante discente na comissão de pós da faculdade e no conselho de pós da USP. Mas sofri resistência dos professores.

Acho que a Poli vai esperar uma ordem de cima para implantar cotas na pós. Já na USP, isso está caminhando bem, diferentemente da graduação –nesse caso, foi a última universidade a incluir cotas.

É urgente fazer esse debate e discutir políticas de apoio à permanência. Os valores das bolsas da Capes e do CNPq não são reajustados desde 2013, estão em R$ 1.500 (mestrado) e R$ 2.200 (doutorado). A bolsa exige dedicação exclusiva. É uma realidade difícil para alguém como eu, que ama a carreira acadêmica. Na escola, era medalhista de olimpíadas de matemática e fiz iniciação científica júnior.

Agora no mestrado, a universidade está diferente. Já me sinto mais pertencente e não tenho problemas acadêmicos, só financeiros mesmo. A minha maior dificuldade no meu departamento é não ter representatividade. Não tenho nenhum professor preto, tenho poucas professoras mulheres e são todas brancas. Tenho um orientador engajado, e, na minha 'bolha', na engenharia de minas, é tranquilo. Mas no âmbito de todas as engenharias da Poli, e na própria USP, a gente é pouco respeitada, é questionada, minimizada.

Em congressos, temos que defender mais as pesquisas, ficar provando mais do que os homens, as pessoas brancas, isso é desgastante. Quando a ciência é feita por pessoas mais plurais, temos resultados mais plurais e mais inovação."

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