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Ser pardo é ser suficientemente negro para discriminação, mas não para políticas públicas, diz especialista

Advogada e pesquisadora Alessandra Devulsky diz que decisões da USP negando autodeclaração de alunos pardos desmobiliza movimento negro

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São Paulo

A decisão da USP de retirar a vaga de alunos aprovados em cotas raciais por negar que eles são pardos pode ter um efeito desmobilizador para a população negra do país. Essa é a avaliação da advogada e pesquisadora Alessandra Devulsky, especialista em colorismo.

"Negar a identificação parda desses rapazes é extremamente desmobilizador para uma população [parda] que começa agora a fazer o seu letramento racial e compreender o seu lugar no mundo", disse Alessandra à Folha.

Para ela, se entender como pardo em um país como o Brasil pode ser ainda mais difícil do que se compreender como preto.

"Assumir ser uma pessoa não branca não é um processo decisório. Ninguém acorda e decide se declarar pardo. É um processo, é um entendimento de ter vivido situações de racismo durante toda a vida. Se autodeclarar pardo é o fim da linha de um processo doloroso, de interpretação do seu lugar no mundo. É reconhecer que se tem aquelas características que são menosprezadas e desvalorizadas pela sociedade racista na qual vivemos", diz.

Alessandra Devulsky, advogada e pesquisadora autora de 'Colorismo', da série Feminismos Plurais - Alex Tran/Divulgação

Ela avalia ainda que a decisão da universidade pode ter um efeito perverso, inclusive, em futuros candidatos, que podem ficar temerosos de se autodeclarar pardos.

"Esses meninos não só perderam a vaga para qual batalharam muito, mas também são encarados como possíveis fraudadores do sistema. Isso com certeza vai deixar um trauma, porque é um processo de muita violência. É uma invisibilização do que são, é a retirada da identidade deles."

O último Censo do IBGE revelou que, pela primeira vez desde 1991, a maior parte da população do país se declara parda. Os pardos somam 92,1 milhões de habitantes, o que representa 45,3% de todos os brasileiros.

"E aí, essas pessoas, que vivem em uma sociedade que coloca um olhar racista sobre elas, no momento em que podem ter acesso a uma política que traz benefícios, que reconhece os estigmas que carregaram durante a vida, ficam submetidas a uma comissão que parece julgá-las não suficientemente negras."

"O recado que se passa é: você é suficientemente negro para ser discriminado, mas não suficientemente negro para poder fruir de certas políticas", completa.

Para Alessandra, a negativa da autodeclaração dos jovens é um contrassenso ao que o país definiu quando decidiu incluir os pardos à população negra (que, segundo algumas classificações, é formada por pretos e pardos).

Alison dos Santos Rodrigues, 18, teve a autodeclaração racial negada pela USP - Leitor

O Brasil vive no contexto do colorismo, com nuances herdadas do período colonial e do processo de mestiçagem vivido no país durante sua formação. E as consequências desse fenômeno fazem parte da vida de pessoas racializadas independentemente de ascensão social, diz Alessandra.

"É evidente que dentro de uma sociedade racista, na qual o Brasil foi produzido, pessoas pardas podem ter facilidades que pessoas pretas não dispõem. Mas elas também não usufruem de todos os direitos e oportunidades que os brancos. Por isso, os pardos são incluídos na população negra e têm direito às cotas."

"Algumas pessoas pardas vão sofrer um tipo de discriminação que, quando comparada às pessoas pretas, pode ser menor e muito mais sutil. Mas nós fizemos essa escolha social, de criar e conceber políticas públicas para integrar os pardos na comunidade negra, muito embora possa também haver ascendência indígena e branca em alguma medida, ainda que menos visível", diz.

Glauco Dalalio do Livramento, 17, perdeu a vaga na Faculdade de Direito da USP por não ser considerado pardo - Leitor

Alessandra reconhece a importância do papel das comissões de heteroidentificação para evitar fraude nas políticas de cotas, mas defende que a USP, assim como outras universidades, precisa deixar mais claro quais são os critérios da avaliação fenotípica. Também diz que é preciso aprimorar os processos de análise para evitar situações de constrangimento como as vividas pelos jovens neste caso.

"Eu acredito que as bancas têm muito mais acertado do que errado, mas todo processo que decorre de uma avaliação humana está sujeito a falhas. Por isso, eu acredito que essas oitivas precisam permitir mais recursos em casos de dúvida."

"Por que se esses meninos não são pretos, não são indígenas, não são brancos, o que eles são? É quase uma não existência, é quase dizer que eles não existem", defende.

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