'É muito mais difícil se casar do que empregar uma pessoa negra', diz especialista em colorismo

Advogada e pesquisadora Alessandra Devulsky explica os impactos dessa ferramenta do racismo nas relações afetivas

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Salvador

Pesquisa Datafolha divulgada em novembro mostrou que a maioria dos brasileiros afirma que a cor da pele não interfere em relacionamentos amorosos ou de amizade. A conclusão é questionada pela advogada e pesquisadora Alessandra Devulsky com base na ideia de colorismo.

O conceito, abordado pela autora no livro homônimo da série Feminismos Plurais, é entendido como uma das ferramentas do racismo para segregar e manter preconceitos contra pessoas negras, com variações de discriminação a depender do tom de pele.

Alessandra Devulsky, advogada, pesquisadora e autora de 'Colorismo', da série Feminismos Plurais - Alex Tran/Divulgação

Para além de determinar com quem e de que forma se darão os relacionamentos, o colorismo tem nuances herdadas do período colonial e do processo de mestiçagem vivido no país durante sua formação. As consequências desse fenômeno fazem parte da vida de pessoas racializadas independentemente de ascensão social e tempo, diz Devulsky.

Pesquisa do Datafolha mostrou que homens e mulheres pretos são os que mais percebem a influência da raça nas relações. Há distinções desse impacto a depender do tom de pele das pessoas?
É muito interessante que as pessoas tenham respondido que não interfere. Nas entrevistas que fiz para a pesquisa do livro tive respostas que me indicam que o fator racial é muito importante na questão da escolha do parceiro. A gente ama as pessoas por uma série de questões conscientes e inconscientes. A gente cria parâmetros daquilo que é belo, daquilo que é valorizado, daquilo que é menosprezado e daquilo que é feio, então obviamente que isso tem um impacto enorme na escolha do parceiro amoroso.

O que acontece dentro do processo de mestiçagem é atravessado pelo racismo.

Durante muito tempo, a gente romantizou [a miscigenação] porque dava a impressão de que, de uma relação inter-racial, sairiam descendentes compostos por traços da branquitude e da negritude, e que isso seria quase que uma evolução natural da sociedade, mas não foi isso que aconteceu. No processo da mestiçagem, a gente substitui e reproduz os elementos do racismo porque a gente vai valorizar aquilo que associamos à branquitude e desvalorizar aquilo que vem da negritude. O racismo persiste e a mestiçagem não resolveu o problema do racismo no Brasil.

No livro, você fala de uma espécie de "passe" que negros de pele clara têm em ambientes sociais, mas que são facilmente rompidos. Considera que, nos relacionamentos amorosos, esse passe também existe e é igualmente frágil?
Não acho que as relações amorosas são pautadas pela questão racial da mesma maneira que as relações familiares ou que as relações no mercado de trabalho. No mercado de trabalho, a maneira pela qual eu vou julgar se essa pessoa é interessante ou não para estar numa equipe, é diferente, em certos aspectos, do "eu vou me relacionar com alguém". Aqui, vou formar uma família, dividir patrimônio, dividir as dívidas, ter filhos com essa pessoa e me responsabilizar por ela, por exemplo, na velhice. É muito mais complexo e o pacto é muito mais profundo. Então, eu diria que esse "passe" é mais fácil no mercado de trabalho porque vou dividir com essa pessoa um espaço que é restrito, começa às 9h e termina às 17h.

Quando você transfere essa métrica para as relações afetivas, a gente não está mais na área da produtividade, mas do afeto. Na área do afeto, o código cultural, a estética e, sobretudo, o sentimento de segurança contam muito. É muito mais difícil casar-se com uma pessoa que é negra do que empregar uma pessoa negra. Na vida privada, o laço é —ou a gente se programa para que seja— indissolúvel. Então o critério é muito maior.

Relacionamentos afrocentrados são uma forma de resistência a essas distinções?
Sempre tenho muita dificuldade de estabelecer regras de como as pessoas devem se relacionar porque a chance de a gente invadir os últimos bastiões de liberdade e emancipação é muito grande.

Uma relação afrocentrada permite uma zona de conforto de partilhar a mesma leitura que a sociedade faz de mim e do meu parceiro. Não quer dizer que, necessariamente, essas duas pessoas, porque são negras, vão pensar igual. Acho que uma relação afrocentrada é uma forma de responder a uma sociedade racista dizendo: "eu não vou interiorizar para minha vida privada a ideologia da supremacia branca". Foi isso que aconteceu durante séculos no Brasil, onde a gente tinha uma tendência a querer relações inter-raciais não para escurecer a população, mas para embranquecer a nossa família para ter mais facilidades dentro da sociedade.

É muito duro dizer isso, mas parte da literatura da sociologia brasileira nos indica que a mestiçagem advém da valorização do elemento branco e não o contrário. Mas dizer que relações inter-raciais entre uma pessoa branca e uma pessoa negra querem dizer, necessariamente, que essa pessoa negra interiorizou a ideologia racista e que busca um parceiro ou uma parceira branca para "branquear" sua família é tão nefasto quanto dizer que toda relação precisa ser afrocentrada. É essa nuance que acho que as pessoas, às vezes, perdem nas discussões sobre as estratégias de combater o racismo.

Quando falamos de relações afrocentradas, fala-se de um compartilhamento de vivências. O colorismo afeta essa empatia, fazendo com que pessoas mais claras tenham percepções insuficientes das vivências de parceiros retintos?
Não tenho dúvida de que eu não teria tido um terço das oportunidades que tive no campo profissional e no campo afetivo se não fosse uma pessoa de pele clara e traços da mestiçagem, porque isso é valorizado em sociedades racistas.

Pessoas com os traços da mestiçagem mais associados à branquitude têm relações que são mais fáceis, mas elas não têm privilégio branco porque não são lidas como brancas. Reconhecer essas facilidades não significa dizer que essas mulheres ou que esses homens são menos negros. Isso significa dizer que essas pessoas têm facilidades que os outros não têm.

Em seus estudos, chegou a observar se há diferenças do impacto do colorismo nas relações conforme o gênero e se mulheres negras de tons mais claros sofreriam menos com esse impacto do que mulheres retintas?
Lélia Gonzalez diz no seu texto [em referência a Gilberto Freyre]: "a mulher preta para cozinhar, a mulata para fornicar e a branca para casar", então a gente vai escalonar os nossos afetos de acordo com a "função" que eu atribuo. Por exemplo, para a mulher negra de pele escura, a subalternidade está presente da mesma maneira como está presente para mulher negra de pele clara, só que é mais fácil para um homem branco racista ter uma relação sexual, desejar, fazer como objeto de desejo uma mulher negra de pele clara por causa do estereótipo estético racista.

Esses mesmos efeitos são vistos em qualquer relação, incluindo as de amizade e as familiares?
Vou me utilizar da pesquisa da Lia Vainer, porque ela demonstra bem que mesmo aquilo que a gente chama de "amor incondicional" da mãe também é atravessado pelas questões raciais.

Existem relações de amizade que são tão profundas quanto uma relação romântica. Então, a escolha dos nossos amigos também vai ser permeada pela questão racial. Onde é que a gente faz os amigos? Na escola, no bairro onde a gente mora, no trabalho, e essas esferas são determinadas por questões socioeconômicas impactadas pela questão racial.

Uma coisa é você se relacionar bem com seu colega de escola, você faz um trabalho na biblioteca, mas você não vai dormir na casa dele, não vai ser convidado para aniversário. A relação de intimidade não se estabelece porque eu não quero necessariamente me envolver, porque isso demanda energia, investimento afetivo, de tempo. Vou investir minha energia entre os meus pares.

Dadas as desigualdades sociais do Brasil, acredita que aqui o que pesa mais na escolha de parceiros seria a classe? Ou a raça ainda se sobrepõe?
Acredito que uma pessoa que é racializada, seja ela preta ou parda, mesmo quando ela galga espaço na sociedade, continuará sempre sendo uma pessoa negra que galgou um espaço que as pessoas veem como um espaço que não é naturalmente dela.

O que a gente chama de uma progressão de classe é algo que se faz com anos de estudo, com bons investimentos. Claro que é mais difícil quando você vem de uma família mais precarizada, mas é possível. Mas você não deixa de ser negro. Você apaga sua identidade de classe comprando um apartamento, um carro, mas identidade racial você leva junto com você. Eu tendo a dizer efetivamente que o recorte racial ainda é predominante no Brasil.

Por que o debate sobre colorismo é importante para as relações entre pessoas negras?
Porque o mais urgente da luta antirracista é a gente se emancipar dos valores e princípios da supremacia branca que nós aprendemos a reproduzir. Então, reconhecer que existe colorismo dentro das nossas comunidades é um passo para combatê-lo, para que a gente não hierarquize negros por conta de traços mais ou menos presentes da africanidade. Conversar sobre colorismo e racismo é conversar sobre nossas estratégias de emancipação.


RAIO-X

Alessandra Devulsky é doutora em direito econômico e financeiro pela USP, mestre em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, bem como especialista em direito ambiental e desenvolvimento sustentável pela Universidade de Cuiabá. Atualmente leciona na Universidade do Québec em Montreal e é pesquisadora e Conselheira na Université de Montreal - UdeM. É diretora-jurídica do Instituto Luiz Gama.

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