'Nenhum parente meu morreu de causa natural', diz lutador que virou filme

Alan Duarte foi formado na Luta pela Paz e hoje ensina boxe para 253 crianças no Alemão

Cristiano Cipriano Pombo
Rio de Janeiro

A história de Alan Duarte, 30, com a ONG Luta Pela Paz começou em 2005, quando, ao ficar com a avó nas férias, o menino de 17 anos do Morro do Adeus, no Complexo do Alemão (zona norte do Rio), foi levado para a academia de boxe por amigos.

“No Morro do Adeus, não tinha nada. E era até difícil a locomoção porque o território era dominado por diferentes facções, e tinham ruas que as pessoas de uma área não podiam acessar. E, quando chegavam as férias, eu ficava na casa da minha avó, que mora na Maré”, conta Alan Duarte.

Alan Duarte foi alundo da Luta pela Paz e hoje, além de professor na ONG, lidera seu próprio projeto social no Complexo do Alemão, no Rio
Alan Duarte foi alundo da Luta pela Paz e hoje, além de professor na ONG, lidera seu próprio projeto social no Complexo do Alemão, no Rio - Renato Stockler

Na Maré, além da oportunidade de praticar um esporte de forma gratuita o –boxe–, Alan conseguiu superar alguns traumas e reverter um histórico de sua família, vítima da violência no Rio de Janeiro.

“Tenho 30 anos e até hoje não vi homem da minha família morrer de causas naturais. Foram nove mortes, sempre pela violência”, conta.

Alan afirma que um dos motivos de estar vivo é a ligação com o boxe e a Luta pela Paz, finalista do Prêmio Empreendedor Social 2018. E que lá aprendeu tudo o que hoje ele ensina no Morro do Adeus, onde instalou o projeto Abraço Campeão. A história do boxeador, inclusive, virou filme, “The Good Fighter” (2017), do diretor Ben Holman, e hoje é inspiração para as 253 crianças que auxilia no Complexo do Alemão.

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A minha história com a luta começou em 2005, na Maré, na Luta Pela Paz. Comecei a participar das aulas de boxe e cidadania e desenvolvimento pessoal, nas férias escolares. Eu vinha para a Maré para passar as férias na casa da minha avó porque minha mãe trabalhava e não tinha ninguém para ficar comigo. Uma vez, meus amigos que participavam da Luta me convidaram. Desde então estou aqui, já faz 13 anos.

Tenho agora 30 anos e até hoje não vi nenhum homem da minha família morrer de causas naturais. Foram nove mortes, sempre pela violência, por armas de fogo. Perdi meu irmão assim, em 2012, assassinado com 34 anos. Nessa época, eu me perguntei: ‘Por que isso acontece? Será que vai acontecer comigo?’. Vi, então, que eu estava bem, mas só porque estava na Luta pela Paz.

Aqui me senti superabraçado, protegido de verdade. E a minha trilha aqui dentro, como aluno, auxiliar e depois treinador, sempre me despertou um pensamento crítico e melhorou minha forma de pensar e agir. Por isso, em 2014, fundei no Morro do Adeus o Abraço Campeão, lá no Complexo do Alemão, que é maior que a Maré, mas tem as mesmas necessidades.

O abraço é um dos conceitos da Luta, assim como campeão. E o objetivo é criar novos exemplos, novos heróis, porque é assim que a gente constrói uma comunidade e um mundo melhor. 

A camisa do Abraço Campeão no Alemão, como a da Luta na Maré, também é muito significativa. Ela representa os alunos, o esporte, uma organização, as mães e os pais. E, de fato, ouço pessoas falando que estavam com a camisa na rua, que os outros respeitam. É um reconhecimento muito forte que você adquire estando com a camisa e fazendo parte de uma organização assim.

A gente precisa dessa identidade de ser alguém. Falo para os meus alunos que tem menino que estuda, é dedicado, anda pela comunidade inteira, mas é um invisível. E ele tem a necessidade de ser visto. Agora, quando pega um ringue e coloca no meio da comunidade para fazer uma luta, você ouve: ‘Lá vai o lutador, meu amigo, não mexe com ele não’. Isso supre a necessidade de ser visto.

E por que Abraço Campeão? O abraço, cara, é todo o significado que a gente fala aqui. Nós não julgamos nem criticamos, todos são bem-vindos. Quando você entra nessas portas, tenha sido soldado do tráfico ou não, de fato você é abraçado, consegue sentir um acolhimento sem julgamentos. 

Hoje eu trabalho na Luta pela Paz e no Abraço Campeão graças também à ajuda do Luke Dowdney [fundador da Luta]. Eu me lembro de tudo até chegar aqui. Cada momento que destravou uma chavinha na minha cabeça, que foi tão importante. Isso contribui para eu mudar as coisas no futuro e fazer diferente.

O Luke também tem muitas frases que inspiram no ringue. Eu me lembro das lutas, com ele falando no meu córner: ‘Meu irmão, esse cara não é melhor que você’. Sempre no início das lutas eu não ia bem, mas ele falava que eu era melhor, porque o cara do outro lado não tinha enfrentado o que eu enfrentei em toda a minha vida no Alemão. Aí, caraca, eu ia para cima e ganhava a luta.

É essa sementinha que a gente tem que semear na cabeça dos meninos e meninas pelo mundo inteiro, que passam por essas dificuldades, para que tenham potencial e força para mudar a sua própria realidade.

No Abraço Campeão, que já tem cinco anos, eu trabalho com 253 alunos. Faço lá o que eu aprendi na Luta. Eu comecei numa quadra de futebol, peguei três pares de luvas daqui que iam ser jogados fora, um saco de boxe que meu amigo arrumou, coloquei na quadra e foi. Tinha sete alunos no início, mas só uma inscrição. E eu chamava o pessoal para treinar pensando: 'Vem, vem, vou te salvar agora'. 

Eu falo salvar porque, ao longo de 30 anos de vida, depois de ver tanta morte, às vezes eu me pego em casa chorando sozinho. Você passa por armas, tiroteios e pensa quando uma bala dessa vai atingir você, porque a gente está no meio. Por isso o que fica é deixar o nosso melhor para o mundo e acreditar sempre.

O momento que eu mais refleti foi na primeira apresentação do filme [The Good Fight - A Vida É Uma Luta] no Tribeca [Film], em Nova York. Eu chorei muito porque pensei em toda a minha trajetória. E aí você se vê viajando o Brasil inteiro, chega a Londres e depois tem a sua história contada em Nova York, em um dos maiores festivais do mundo. Robert DeNiro estava de um lado, Whoopi Goldberg, do outro, tinha show da Aretha Franklin. Pensei: ‘Nossa, como é que isso acontece?’. E chorei tanto que eu acho que eu até emagreci.

Por isso tudo sou muito grato porque, se eu não estivesse aqui, poderia ter zilhões de possibilidades, mas estou, com certeza, na melhor de todas. E até o meu filho eu trouxe para o boxe. O boxe é muito significativo porque a vida é uma luta, e a gente pode comparar com o ringue. Quando você está lá, são tantas emoções, tantas decisões, tanta responsabilidade, tanto compromisso que você faz isso o tempo todo na sua vida. E a gente não perde, a gente aprende sempre. Lidar com isso é fundamental hoje. É um teste para a vida.

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