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Empresária vende negócio milionário para se dedicar a ONG no sertão

Amigos do Bem aliam unidades produtivas e centros de transformação que beneficiam 75 mil pessoas

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São Paulo

Alcione Albanesi, 57, reuniu os quatro filhos, em São Paulo, para dar uma notícia importante. “Acharam que eu estava grávida de novo”, conta, rindo. 

O anúncio, na verdade, era de que a família cresceria muito mais: a partir daquele momento ela passaria metade de cada mês no sertão nordestino para cuidar das milhares de pessoas atendidas pelo projeto social que fundou em 1993, os Amigos do Bem.

“Eles até assinaram um contratinho de que estavam conscientes de que a mamãe teria outra família e cuidaria dela até o fim da vida”, lembra. 

Até então, Alcione visitava esse outro filho uma vez ao ano. Começou as ações filantrópicas após ver notícias sobre a miséria no semiárido mais populoso do mundo. Empresária bem-sucedida, ela capitaneou um grupo de amigos para arrecadar alimentos e roupas para distribuir no Nordeste no Natal.

“Eu lia, ouvia falar, mas muda tudo quando se está no meio daquele abandono. Foi uma transformação dentro de mim”, diz ela sobre a primeira viagem, que se repetiu por dez anos, percorrendo povoados onde crianças não conheciam Papai Noel.

A decisão de deixar de ser a versão feminina do “bom velhinho” para atuar de forma mais estruturante —o momento do “contrato” com os herdeiros— ocorreu em 2001.

Desde então, a ONG foi ganhando projetos, espalhando-se por 130 povoados de Alagoas, Ceará e Pernambuco.

Sob a batuta de Alcione, foram criadas fábricas de beneficiamento de castanha, plantações de caju, oficinas de costura e artesanato  e até pequenas vilas, as Cidades do Bem. 

A mudança de rumo foi inspirada por um encontro da empreendedora social com uma mãe sertaneja, que sofria de elefantíase. “Dona Geralda chegou com as pernas sangrando. Fui levá-la em casa e ela me deu a receita da fome: punha muita água em um pouquinho de feijão para alimentar as crianças”, relata Alcione. “Aquilo ficou dentro de mim. Não podíamos mais só passar pela vida deles.”

A empresária rebate os críticos ao assistencialismo que repetem a máxima de que “é preciso ensinar a pescar, e não dar o peixe”. “Em rio seco não se pesca”, argumenta. “Lá não há trabalho. Plantam e perdem. Não tem como reverter sem intervenção humana.”

Era preciso ir além da filantropia. E assim, foi inaugurada a primeira Cidade do Bem no Catimbau, distrito de Buíque (PE), localizada em uma fazenda adquirida por Alcione. Ali foram plantados mais de 100 mil pés de caju, matéria-prima que alimenta a fábrica de castanhas e de doces, gerando mais de 300 empregos na região.

Parte dos operários vive em casas de alvenaria dentro da vila, que conta com praça, museu e oficina de costura. “Tiramos as pessoas das casas de taipa, mas não adianta nada se não oferecer educação e gerar trabalho.”

As vendas de castanhas premium para grandes redes de varejo do Sudeste ajudam a financiar a ONG, que é 30% autossustentável e tem meta de chegar a 50% em três anos.

Perto da fábrica está o Centro de Transformação (CT), espaço de 3.000 m² com cursos extracurriculares e profissionalizantes. A ONG mantém quatro CTs que beneficiam 10 mil crianças.

“Até o final do ano, 300 jovens que passaram pelo Amigos do Bem vão ter entrado na faculdade. São filhos de pais analfabetos, que corriam no mato seco e agora ostentam diplomas, quebrando um ciclo de miséria e exclusão.”

celebridade no sertão

Alcione é celebridade no sertão. Chegou ao CT em Buíque buzinando em sua caminhonete. Foi abraçada por uma multidão de crianças e recebida com cartazes de agradecimento. Estava quase sem voz, mas isso não a impediu de se comunicar com a ajuda do marido e de uma das filhas, Caroline. “Tenho orgulho de vocês!”, sussurrava, do palco.

No corpo a corpo, perguntava sobre o filho doente de um, o neto de outra. “Tenho 75 mil filhos”, contabiliza. 

A maior fonte de inspiração de Alcione é a mãe, Guiomar, que fundou 11 creches em São Paulo. Na infância, a empresária passava as férias cuidando das crianças e insistia para ir ao Ceasa arrecadar frutas e legumes. “Eu sentava em cima dos caixotes e não saía até o feirante doar”, lembra. 

Modelo na adolescência, ela queria abrir uma confecção. Aos 17, tinha um negócio de roupas com 80 funcionários.

Dez anos depois, aventurou-se ao comprar uma loja de material elétrico na rua Santa Ifigênia —onde, com seu 1,74 m de altura, era assediada e subestimada pelos outros lojistas, todos homens.

O negócio virou, em 1992, a FLC, empresa líder de mercado no Brasil, desbancando multinacionais como a Philips. Alcione se diverte lembrando das 71 viagens que fez à China, quando vislumbrou oportunidade na abertura das importações na Era Collor.

Na primeira vez, desembarcou sem conhecer ninguém nem falar chinês. Buscou fornecedores nas Páginas Amarelas. Encheu contêineres de lâmpadas, mas descobriu que o produto não era compatível no Brasil. Acertou na viagem seguinte e chegou a ter oito fábricas no país asiático como fornecedoras exclusivas. 

Em 2014, tomou “a decisão mais difícil e mais consciente” de sua vida: vendeu a FLC para se dedicar aos Amigos do Bem. Para ela, A ONG, que ganhou um braço de negócios de impacto social, é mais complexa, já que atua em vários campos, da perfuração de poços à formação.

“Fazemos o ciclo completo: desde o enxoval da criança até oportunidade de emprego na vida adulta. Isso é dificílimo.”

Alcione fala muito em Deus, se diz ecumênica. “Não acordo sem orar.” De manhã, repete para si mesma: “Vai dar tudo certo”. “Não me permito perder a confiança.”

Ela dorme cinco horas por noite, trabalha muito e tem uma “disposição insuportável”, brinca seu marido, o empresário Ricardo Yolle, 44. “Mas mais do que disposta, ela tem um dom: o de despertar que as pessoas queiram ser melhores”, diz ele. 

Alceu Caldeira, 52, ex-diretor da FLC, acompanhou Alcione e se tornou seu braço-direito na ONG. “Ela é exigente, mas tem muito sentimento.”

Alcione quer atuar no sertão até o último dia de vida e quer que os filhos sejam seus sucessores. “Pode vir tecnologia, crescimento, mas a base, o amor, nunca irá se perder”, diz. “A transformação de que o mundo precisa acontece de dentro para fora.”

Amigos do bem

Fundação
1993

Formato
ONG e negócio de impacto social

Área de atuação
Desenvolvimento local, educação e geração de renda

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