Descrição de chapéu Dias Melhores

Programador trans inclui minorias em mercado de TI

Startup cria metodologia para formar mão de obra LGBT, negra e de periferia

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São Paulo

“A Carambola nasceu do meu fígado”, brinca Gustavo Glasser, sobre o negócio que fundou em 2013 e que alia educação, tecnologia e inclusão social.

A Carambola foi criada a partir da experiência do programador nascido mulher numa família de classe média baixa no Grajaú, na periferia da capital paulista. 

Gustavo ainda era Juliana e desbravava um mercado de tecnologia dominado por homens héteros, brancos e de classe média-alta.

Desde cedo, reclamava dos limites sociais impostos às meninas. “Menino podia fazer tudo, e menina, não.”

Os carrinhos de brinquedo e as partidas de futebol eram negociados com a mãe, que cedia desde que a filha com jeito moleque usasse vestido no aniversário. “Sempre me vi como menino.” Aos 30 anos,

Gustavo descobriu ser transgênero (pessoa que têm identidade de gênero diferente do sexo atribuído no nascimento).

Revisitar sua trajetória durante o processo do Prêmio Empreendedor Social representou um ponto de virada. No segundo de três encontros com a Folha, Juliana foi questionada sobre o que a levou a não fazer a transição para o gênero com que se identificava. “Aquela pergunta ficou reverberando na minha cabeça.”

Na terceira conversa, o cabelo curto prenunciava a decisão. “No dia em que cortei e decidi pela transição, me olhei no espelho detidamente pela primeira vez na vida. Passei a ter a imagem externa que sempre tive de mim.”

Gustavo Glasser conduziria, dali por diante, as novas temporadas da admirável vida da Juliana que deixava para trás. 

Tudo correra o curso esperado até sua primeira namorada, no final da adolescência. Gustavo testemunhou a avó da moça colocando a neta para fora de casa por ela ser gay.

Levou a moça para viver com sua família, que descobriria sua opção sexual por meio de uma carta-desabafo.

No lugar de a expulsarem de casa, foram os pais que saíram do apartamento. “Brinco que vim de família inovadora.”

A mãe admite que foi vítima de desinformação e preconceito. “Vim de uma educação alemã tradicional, e fiquei chocada. E ele teve de começar a vida sozinho, enfrentando tudo”, lamenta Magda.

Sem apoio e sem profissão, aos 19 anos Gustavo recorreu a bicos três vezes por semana, a R$ 30 por dia. Foi barman, trabalhou em empresa de mudança e se orgulha de carregar geladeiras sem ajuda. Viajou montando palco para a dupla sertaneja Victor e Léo. 

Até que acompanhou um amigo a uma concessionária para comprar um carro. Na hora do financiamento, o amigo declarou ganhar R$ 5.000. “Eu disse: ‘Como? Eu quero começar a fazer isso amanhã’!”, recorda-se.

Ele era programador e indicou conteúdos para que estudasse até descobrir um curso gratuito no Senac. Gustavo precisou parar de trabalhar para estudar. As contas não paravam de chegar: a luz foi cortada. Viveu três meses no escuro, sem geladeira.

Chegava ao Senac antes de todo mundo. Tomava banho no vestiário. Um amigo dividia com ele o tíquete refeição. Sem dinheiro para a condução, caminhava seis quilômetros até em casa. “Eu me dediquei. Tinha um desespero ali.”

Até que foi contratado como estagiário do Centro de Inovação da Microsoft. “Passei a ganhar R$ 1.200 por mês. E aquilo mudou a minha vida.”

Gustavo diz ter uma relação de amor com empresa de Bill Gates. “Eu me destaquei porque meus colegas eram mais jovens e reclamavam ou tinham preguiça. Eu tinha urgência em resolver a vida.”

Emendou com o Bacharelado em Sistemas de Informação, para o qual recebeu 50% de bolsa do Prouni e 50% de bolsa-carência do Senac.

Foi contratado por um banco. E, ao contar sua história, surpreendia-se com o espanto de seus pares. “Não tinha dimensão do esforço que tinha feito, e só pensava que tinha muita gente lá fora com histórias como a minha.”

Gustavo precisou vencer, um a um, o machismo e a misoginia, a homofobia e a discriminação de gênero, a pobreza e a falta de oportunidades. Jornada que permitiram a ele elaborar um modelo de negócio que promete revolucionar o mercado de TI.

“Hoje, no Brasil, há 300 mil vagas abertas de TI. Há empresas à beira do abismo por não ter equipes para desenvolver projetos”, explica Gustavo.

Entre os clientes da Carambola estão Itaú e Laboratório Fleury, que pagam pela formação de futuros contratados.

Sua metodologia opera a partir de trios com competências complementares em que ao menos um dos integrantes vem de uma minoria em representatividade no mercado de TI: uma mulher, um negro, uma pessoa LGBTQ ou com necessidades especiais. Com isso, Gustavo desenvolveu antídotos para dificuldades que sentiu na pele.

Em 2011, a então jovem programadora descobriu uma doença autoimune e ficou nove meses sem trabalhar. Foi morar na casa dos pais da namorada, Cris, que tinha dois filhos quando se conheceram. 

Quando voltou ao trabalho, seu cargo havia sido ocupado. E Gustavo resolveu montar seu próprio negócio e se mudar com a família para uma casa em um bairro de classe média, cujo aluguel não tinha dinheiro para pagar. 

Colocou o enteado, Guilherme, numa escola particular, na qual seu Gol com vidro enguiçado fazia fila entre Mercedes.

“Sempre chutei a bola lá pra frente para depois correr atrás. Deu certo. Nada resiste ao trabalho.” Foram muitas cabeçadas até cruzar seu caminho com o do engenheiro Renato de Almeida Prado, 45. “Fiquei impressionado com tudo o que o Gustavo já tinha feito.”

Ele propôs que juntassem as empresas em uma holding. Mesmo receoso de sociedade com “um homem, branco, de família poderosa, com nome de rua”, Gustavo topou. Tem dado certo. “Viemos de mundos diferentes: ele dos Jardins, eu do Grajaú. Nós crescemos um com o outro”, diz ela. O negócio ganhou segurança financeira e de gestão. 

Gustavo, mesmo na pele de Juliana, já se vestia como homem, quando se expunha à homofobia e à transfobia. O exemplo mais extremo foi na assinatura de um contrato. O diretor da empresa se mostrou incomodado quando Gustavo se referiu à companheira como “esposa”. 

“Nos deixaram um tempão esperando, até receber mensagem pedindo que Gustavo aguardasse na portaria”, relata Almeida Prado. Deixaram a sala juntos para não mais voltar.

No ano seguinte, Gustavo foi convidado a dar uma palestra no Microsoft Inspire 2017, em Washington (EUA). “Todo mundo veio falar comigo no final”, relata. 

Resiliência e inovação fazem parte do DNA da tecnologia tanto quanto da história de Gustavo. “Sempre tive a visão de ter impacto no mundo, mas o mundo teve antes grande impacto na minha vida.”

Carambola

Fundação
2013

Formato
Negócio de impacto social

Área de atuação
Educação, tecnologia e inclusão

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