Descrição de chapéu The New York Times Sexo

Descaso com as mulheres é barreira para pesquisadores estudarem o clitóris

Falta de conhecimento fez com que pacientes perdessem a sensibilidade da área ao fazer cirurgias

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Rachel E. Gross
The New York Times

Se havia uma coisa que Gillian sabia, era que ela não queria um instrumento furador perto de sua genitália.

Assim, em 2018, quando um ginecologista recomendou uma biópsia vulvar para averiguar a presença de sinais de câncer, ela hesitou.

O médico desconfiava que uma pequena área de pele esbranquiçada que Gillian encontrara ao lado de seu clitóris era líquen escleroso, uma doença de pele que normalmente é benigna. Para Gillian, enfermeira registrada, retirar um pedaço da parte mais sensível de seu corpo lhe parecia um pouco extremo demais.

Clítoris
Um cartão de agradecimento da clínica da médica Rachel Rubin - Shuran Huang/The New York Times

Mas ela acabou consentindo. Ele era médico, ela era enfermeira. Ela supôs que ele fosse a autoridade em relação a essa parte do corpo. "Nunca trabalhei com ginecologia e obstetrícia", disse Gillian, que pediu para ser identificada apenas pelo primeiro nome para proteger sua privacidade.

"Eu não tinha muita noção das coisas."

Para a biópsia, Gillian foi colocada numa mesa com apoios para as pernas e recebeu uma injeção epidural a fim de anestesiar a área. Depois do procedimento, para conter o sangramento, o médico pôs uma mão sobre a outra e fez pressão forte sobre sua vulva –a genitália feminina externa, incluindo os lábios grandes e pequenos, a abertura da vagina e o clitóris. Mesmo anestesiada, Gillian sentiu a pressão sobre seu osso público. Ela gritou.

Um mês mais tarde, Gillian estava na cama com seu namorado quando percebeu que não conseguia mais chegar ao orgasmo. Ela ficava excitada, mas no momento xis, "não dava em nada", contou. "E é assim até hoje."

Quando ela informou seu ginecologista, ele especulou que ela poderia estar com insensibilidade causada pela cicatrização e disse que o problema desapareceria com o tempo. Não desapareceu. Alarmada, Gillian começou a procurar um especialista depois de outro em busca de uma explicação e, ela esperava, uma solução.

Foi quando ela descobriu que ninguém queria falar de seu clítoris.

Quando ouviu sobre a lesão que ela sofrera, um urologista comparou Gillian a uma vítima de estupro e disse que ela possivelmente sofrera uma reação traumática à biópsia.

Em seguida, uma especialista em saúde feminina fez o diagnóstico de perimenopausa e prescreveu creme de testosterona. Outro ginecologista recomendou um procedimento de rejuvenescimento vaginal.

Quando Gillian tentava direcionar a conversa de volta para seu clítoris, a reação dos especialistas era um olhar indiferente. "Eles me olhavam como se eu fosse completamente insana", contou. "Eu ficava repetindo que havia algo de errado com meu clitóris, e eles faziam tudo menos reconhecer o clitóris."

"Uma consideração secundária, no máximo"

Segundo o urologista Irwin Goldstein, pioneiro no campo da medicina sexual, alguns urologistas comparam a vulva a "uma cidade pequena no Meio-Oeste". Ou seja, os médicos tendem a passar por ela, mal parando para olhá-la, a caminho de seu destino final: o colo do útero e o útero. É ali que acontece a ação médica de verdade: ultrassonografias, papa-nicolaus, inserção de DIUs, parto.

Se a vulva como um todo é uma cidadezinha à qual ninguém dá o devido valor, o clitóris é o boteco local na beira da estrada: pouco conhecido, raramente levado em conta, o melhor a fazer é provavelmente evitá-lo.

"Ele é completamente ignorado por praticamente todo o mundo", disse Rachel Rubin, urologista e especialista em saúde sexual, de Washington. "Não há nenhuma comunidade médica que tenha assumido as pesquisas, os cuidados e o diagnóstico de problemas relacionados à vulva."

Questionada sobre o que aprendeu sobre o órgão na escola de medicina, Rubin respondeu: "Nada que tenha ficado na minha memória. Se ele chegou a ser mencionado, foi uma consideração secundária, no máximo."

Dr. Rachel Rubin
A urologista e especialista em saúde sexual Rachel Rubin - Shuran Huang/The New York Times

Foi apenas anos mais tarde, quando estudou medicina sexual com Goldstein, que ela aprendeu como examinar a vulva e a parte visível do clitóris, conhecida como glande. Ela aprendeu que o órgão inteiro é uma estrutura profunda, composta principalmente de tecido erétil, que se estende na pelve e circunda a vagina.

Hoje Rubin se nomeou a "clitorologista" máxima de Washington. É uma brincadeira, claro, mesmo porque poucos competem pelo título –por constrangimento, por falta de conhecimento ou por medo de faltar com o decoro com as pacientes.

"Nós, médicos, gostamos de enfocar o que sabemos", ela disse. "E não gostamos de demonstrar fraqueza, de deixar perceber que desconhecemos alguma coisa."

Essa atitude quase universal dos médicos de evitar o assunto clitóris tem consequências para as pacientes.

Em um estudo de 2018 publicado no periódico Sexual Medicine, Rubin, Goldstein e colegas constataram que o fato de não examinarem a vulva e o clítoris leva médicos a regularmente deixar de tomar nota de problemas de saúde sexual.

Quase uma em cada quatro mulheres que procuraram a clínica de Goldstein tinham adesões clitoridianas, que ocorrem quando o capuz do clítoris adere à glande e pode provocar irritação, dor e redução do prazer sexual.

Os autores concluíram que todos os médicos que atendem mulheres deveriam examinar o clitóris como questão de rotina. Mas, escreveram, é mais fácil recomendar isso que fazê-lo, já que a maioria dos médicos "não sabe examinar o clitóris nem se sentem à vontade em fazê-lo".

Essa omissão pode prejudicar as mulheres, além de homens trans, e outras pessoas com vulva. Já houve casos documentados de lesões ao clítoris em procedimentos que incluem cirurgias com malha pélvica, episiotomias realizadas no parto e até mesmo cirurgias de quadril.

Quando é realizada incorretamente, a labioplastia – um procedimento para reduzir o tamanho dos pequenos lábios, uma das cirurgias plásticas que mais estão aumentando no mundo — também pode prejudicar nervos, levando a dor genital e à perda de sensação sexual.

Para Rubin, muitas dessas lesões poderiam ser evitadas se os médicos dedicassem mais tempo ao estudo do clitóris.

Uma tradição de descaso

Então por que não sabemos mais sobre o clitóris? Para Rubin, o motivo é simples: o órgão está intimamente envolvido com o prazer e o orgasmo da mulher. E, até muito recentemente, essas temas não estavam no topo da lista de prioridades da medicina, nem sequer eram vistos como áreas apropriadas de pesquisa médica.

Helen O’Connell, a primeira urologista de mulheres da Austrália, lembrou que quando ela própria foi à escola de medicina, o clitóris mal chegou a aparecer em cena.

Na edição de 1985 do livro didático médico "Last’s Anatomy", que ela estudou, um corte transversal da pelve feminina omitiu o clítoris por completo, e aspectos da genitália feminina eram descritos como "mal desenvolvidos" e uma "falha" de formação genital masculina.

Já as descrições do pênis se alongavam por páginas. Para O’Connell, esse desinteresse médico generalizado ajuda a explicar por que seus pares urologistas se esforçavam para preservar nervos no pênis quando faziam cirurgias de próstata, mas não tinham o mesmo cuidado quando realizavam cirurgias pélvicas de mulheres.

O’Connell decidiu investigar a anatomia completa do clitóris, usando microdissecação e ressonâncias magnéticas.

Em 2005 ela publicou um estudo abrangente mostrando que a ponta externa do órgão – a parte que pode ser vista e tocada — é apenas a ponta do iceberg, equivalente à glande peniana. O órgão completo se estende abaixo da superfície e abrange dois bulbos em formato de lágrima, dois braços e uma coluna.

Quando deixam de apreciar essa anatomia, ela avisou, cirurgiões que operam nessa região correm o risco de lesionar os nervos sensíveis responsáveis pelo prazer e o orgasmo que percorrem o topo da coluna.

Em procedimentos como cirurgias com malha pélvica ou cirurgias da uretra, "as coisas podem estar em um fogo cruzado", disse O’Connell. "É preciso pensar sempre no que está por baixo, no que está oculto e que você pode estar alterando."

Cada vez mais mulheres estão vindo a público falar de lesões que sofreram nessa região durante procedimentos de rotina. Uma delas é Julie, 44 anos, gerente de um escritório em Essex, a leste de Londres.

Em 2012 ela fez uma cirurgia de quadril minimamente invasiva para resolver uma dor de costas, e o procedimento a levou a perder a capacidade de chegar ao orgasmo. No ano passado ela compartilhou sua história publicamente no jornal The Telegraph, omitindo seu sobrenome para evitar a possibilidade de ser discriminada por empregadores futuros.

Numa ligação do Zoom em janeiro, Julie contou que acordou da anestesia sentindo dor lancinante na região do clítoris. O cirurgião lhe disse que ela ficara com um hematoma, e que o problema desapareceria. Alguns meses mais tarde, ela descobriu que não conseguia mais chegar ao orgasmo. Quando tentava, "era literalmente como se alguém tivesse arrancado um fio da tomada", ela contou. "Morria tudo."

Julie passou dois anos fazendo buscas na internet até perceber que um poste cilíndrico posicionado entre suas pernas durante a cirurgia provavelmente esmagara seus nervos clitoridianos. É sabido que o uso do dispositivo, conhecido como poste perineal, causa lesões aos nervos, mas esse fato não foi mencionado no formulário de consentimento que ela assinou antes da cirurgia.

Julie comparou sua lesão à perda do paladar ou do olfato –um prazer que consideramos como algo inato, mas que, quando o perdemos, muda tudo. "Já se passaram dez anos e ainda não consigo acreditar", ela disse. "E ainda não me conformei com isso."

Gillian ainda está tentando entender a causa de sua própria lesão. Terá sido a biópsia? A pressão esmagadora que o ginecologista aplicou depois? Quatro anos e 12 especialistas mais tarde, ela já se conformou com o fato de que talvez nunca recupere aquela sensação. "Isso mudou minha vida inteira", ela disse. "É arrasador, é uma coisa da qual você não consegue se recuperar. Nunca."

Um novo mapeamento médico

Quando Blair Peters, cirurgião plástico de 33 anos da Oregon Health & Science University, começou a realizar faloplastias para homens trans e pessoas não binárias, surpreendeu-se ao ver como são grandes os nervos do clitóris: cerca de 3 mm de diâmetro, em média (a título de comparação, o nervo sensorial do dedo indicador tem 1 mm de largura).

"Quando fiz faculdade de medicina, não aprendemos nada de específico sobre o clitóris, tirando o fato de que ele existe, basicamente", disse Peters. Graças a isso, ele criou "uma ideia subconsciente de que não era uma estrutura super aparente. Mas é."

Peters faz parte de um grupo pequeno de médicos jovens, adeptos das redes sociais, que, como Rubin, estão ajudando a ampliar o mapa médico desse território – e, com isso, a evitar que se repita o que aconteceu com Julie e Gillian.

Como parte de seus esforços para melhorar a sensibilidade sexual dos pacientes que passaram por faloplastia, Peters recentemente ampliou os nervos clitoridianos e contou quantas fibras nervosas eles contêm.

O número que encontrou – embargado até ele apresentar suas descobertas numa conferência no final deste mês — foi "significativamente superior" a 8.000, o número frequentemente citado, que é tirado de um estudo desatualizado sobre vacas.

Em 2020, Victoria Gordon, estudante de medicina na Kansas City University of Medicine and Biosciences, comandou um estudo que procurou delimitar uma "zona de perigo" em volta do clítoris a ser evitada por cirurgiões plásticos. Enquanto fazia dissecações de cadáveres, ela observou que os nervos clitoridianos às vezes se abrem em ramos minúsculos e finos, como raízes, de maneiras que podem ser relevantes para cirurgiões, mas que não foram descritas anteriormente na literatura médica.

Ela espera que outros no campo da cirurgia plástica levem adiante o estudo de suas descobertas, que foram publicadas num periódico de cirurgia plástica. "Sou apenas uma estudante de medicina de quarto ano", ela disse no final de 2021. "Acho que não sou eu quem deveria estar encarando esse projeto. Mas ninguém mais está."

Tradução de Clara Allain

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