Descrição de chapéu Entrevista da 2ª maternidade

Avanços na ciência e na medicina nos transformarão em cuidadores de velhos doentes, diz autora americana

Liz O'Donnell criou uma comunidade e escreveu um livro para chamar a atenção para mulheres que equilibram maternidade, relacionamentos, vida profissional e cuidados com os pais enfermos

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São Paulo

Liz O’Donnell é uma americana de origem irlandesa que desde cedo soube que poderia apostar no próprio talento e força de trabalho para ganhar a vida. Chegou ainda jovem ao posto máximo de sua carreira, como gerente de marketing da empresa americana Double Forte, especializada em relações públicas.

Quando se casou, ficou claro para ela e o marido que, acontecesse o que fosse, a carreira dela era inegociável. Teve dois filhos, hoje já adultos, e os desafios impostos pela maternidade de uma mulher em um mercado competitivo a fizeram pensar que poderia ajudar outras como ela.

Criou, com uma colega de trabalho, a SheStarts, uma plataforma digital com a finalidade de unir mulheres empreendedoras da área de Boston, capital do estado de Massachussetts (EUA), onde morava.

Liz O'Donnell
A autora americana Liz O'Donnell, que escreveu o livro "Working Daughter" (Filha trabalhadora, em português) - Rick Bern/Divulgação

Escreveu um best-seller chamado "Mogul, Mom & Maid: The Balancing Act of the Modern Woman", lançado em 2013. O título em inglês faz um jogo de palavras que, traduzido para o português, soa bastante antipático, algo como "Magnata, Mãe & Empregada Doméstica: O Ato de Equilíbrio da Mulher Moderna".

Enquanto dava entrevistas a respeito deste tal equilíbrio, Liz soube, no mesmo dia, que tanto seu pai quanto sua mãe tinham doenças terminais. De uma hora para outra, tudo que ela tinha aprendido, e que viajava o país ensinando, não era mais suficiente.

"No começo eles só precisavam de mim para ajudar com coisas da casa, eu ia ao supermercado para eles nos finais de semana, cortava a grama do quintal, consertava coisas que quebravam na casa", contou ela, em uma conversa com a Folha por chamada de vídeo.

Conforme a doença dos dois avançava, a presença de Liz foi se tornando mais importante e frequente. "Meu pai parou de dirigir porque estava perdendo a audição e minha mãe porque levou um tombo", lembra.

"Essa é a fase em que muitas ainda não se dão conta de que passaram a ser cuidadoras dos pais e não estão apenas sendo uma boa filha. Ela vem logo antes de uma outra fase, mais dura, quando você percebe que seus pais não estão tendo o cuidado adequado porque você é muito ocupada para prestar atenção neles".

No meio dessa tempestade emocional, Liz percebeu que outras pessoas da sua faixa etária, entre 40 e 50 anos, principalmente mulheres, viviam situações familiares semelhantes e ninguém falava sobre isso.

Criou uma comunidade no Facebook chamada Working Daughter (Filha trabalhadora, em português) para trocar informações, dicas de médicos e de como lidar com os pais velhos, além de conversar e até rir de situações inusitadas.

Em 2020, lançou o livro "Working Daughter", inédito no Brasil, e fez tanto sucesso que passou a trabalhar apenas meio período em sua profissão original. Hoje metade de seu tempo é dedicado ao tema. A comunidade se desvinculou do Facebook e, no ano passado, comemorou nos EUA o primeiro Dia Nacional das Filhas Trabalhadoras, que acontece na terceira quarta-feira de novembro.

Em uma conversa de duas horas por Zoom, Liz contou sua história e lançou o alerta: "Melhor se preparar, porque isso vai acontecer com todo mundo".

Fiquei muito surpresa quando percebi que seu livro não foi lançado no Brasil, porque, na nossa cultura, é muito comum que as famílias cuidem de seus velhos até o final. Não é muito bem aceito socialmente botar os velhos em casas de repouso, como nos Estados Unidos e na Europa. Eu deveria ter procurado as estatísticas do Brasil, lamento não ter feito isso, mas pelo que sei da cultura de vocês devem ter números bastante parecidos com os dos Estados Unidos. Aqui, entre 60 e 70% das pessoas que cuidam de parentes mais velhos são mulheres.

Há um número significativo de homens que assumem essa função, mas decidi focar nas mulheres porque temos mil outras pressões sociais que interferem na nossa vida profissional só porque somos mulheres. E nossas sociedades estão envelhecendo muito rapidamente. Com os avanços recentes na ciência e na medicina, doenças que matavam muito rapidamente acabaram se tornando doenças crônicas, administráveis, portanto todos nós vamos acabar cuidando de velhos doentes.

Em que momento da sua jornada pessoal como cuidadora de seus pais você percebeu que esse era um tema que precisava ser mais explorado? Em geral, há um momento muito específico na vida de todas as pessoas que cuidam de parentes velhos ou doentes que eu batizei de "caregiving creep", susto de cuidador. Ninguém planeja isso na vida, acaba acontecendo, e uma hora você se dá conta que virou essa pessoa e leva um tremendo susto.

No começo você acha que só está dando uma ajuda, como qualquer bom filho faria, mas essa ajuda começa a ocupar mais e mais tempo e espaço na sua vida e todo o resto começa a colapsar ao seu redor. Você perde dias de trabalho, deixa de fazer as coisas que gosta ou te fazem bem, perde compromissos familiares, deixa o marido em segundo, terceiro, quarto plano e vai ficando irritada e exausta, e não tem nada para se apoiar.

Eu cheguei a esse ponto em um dia que nunca vou esquecer. Foi quando me vi completamente sozinha e despreparada e me senti uma fraude, porque eu estava ao mesmo tempo dando palestras e escrevendo artigos sobre como equilibrar o trabalho e a família.

O que aconteceu neste dia? Minha mãe tinha uma consulta médica, e ela morava a mais ou menos uma hora de distância da minha casa. Então tirei um dia das minhas férias para acompanhá-la. Acordei às 6h da manhã para responder emails de trabalho, porque você tira o dia de folga, mas ninguém mais faz isso, então há demanda. Em seguida preparei o café da manhã, meus filhos saíram para a escola, peguei o carro para ir até a minha mãe. O [site noticioso] Huffington Post me ligou pedindo um artigo, o que achei maravilhoso e aceitei na hora, poderia escrever voltando para casa, mas já comecei a gravar no celular algumas coisas que precisariam estar no artigo enquanto dirigia.

Quando cheguei na casa da minha mãe, ela estava entrando no banho, mas já deveria estar pronta. A gente estava com o tempo contado, e eu, aflita, mas tentando ser gentil, perguntei o que tinha acontecido, e ela me disse "eu não tive forças para me arrumar esta manhã".

Finalmente chegamos no médico e ele disse que minha mãe estava perdendo peso e me perguntou o que ela comia todos os dias. Eu perguntei, "mãe, o que você tem comido?", mas ela estava distraída com alguma coisa e não respondeu. Então o médico me disse: "como você não sabe o que ela come? Você não fala com ela todos os dias? Você já deveria ter levado ela para morar com você".

Eu disse que tinha um emprego e viajava muito a trabalho e senti muita vergonha disso. Depois fiquei com muita raiva de ter sentido vergonha de ser bem-sucedida profissionalmente. Naquela noite eu tinha uma palestra agendada para falar do meu primeiro livro junto com outra autora, muito mais conhecida, que tinha escrito um livro com um tema parecido, mães que trabalham muito. E no final do evento, ao qual eu tinha ido sem nem trocar de roupa, eu pensei que já tinha gente demais falando sobre o equilíbrio da vida profissional e da maternidade, e ninguém para me ajudar a solucionar o problema de ser uma filha trabalhadora.

Você é filha única? Não, tenho duas irmãs mais velhas. Passei muito tempo reclamando do fato desse cuidado ter ficado quase todo nas minhas costas, que mesmo antes de virar a principal cuidadora dos meus pais já tinha a vida mais atribulada, com o trabalho que mais demandava – e que mais produzia dinheiro – entre nós três.

Mas, no fim das contas, eu sou a pessoa da família que gerencia melhor as coisas, sou muito boa com logística e interajo bem com médicos e enfermeiras. As mesmas características que me fizeram ser bem-sucedida profissionalmente foram as que me fizeram virar a principal cuidadora dos meus pais.

Qual o principal conselho que você dá a quem vira de uma hora para outra a cuidadora principal de pais velhos ou doentes? Bem, eu escrevi um livro inteiro sobre isso. O fundamental é aprender a aceitar que sua vida se transformou em algo que você não planejou, mas ainda é a sua vida. Não fique esperando essa fase passar para fazer isso ou aquilo.

Outra coisa importante é lembrar que a perfeição é um conceito supervalorizado e inatingível, então não se julgue muito. Esse trabalho de cuidadora é essencial, lembre-se disso o tempo todo, e aceite ajuda. É quase impossível ser uma boa mãe, uma boa companheira, uma boa profissional e uma boa filha ao mesmo tempo. Ninguém foi treinado para isso. Então, dane-se se não deu tempo de pintar o cabelo, arrumar a cama ou fazer exercício. E, se por um momento da vida você achar que não está sendo uma boa companhia, danem-se os amigos também. Faça o que é mais importante. Já está ótimo.

Raio-X

Liz O’Donnell é executiva de uma empresa de relações públicas e autora de "Working Daughter: A Guide to Caring for Your Aging Parents While Earning A Living" (Filha trabalhadora: um guia para cuidar de seus pais idosos enquanto ganha a vida, em português), de 2020, e do best-seller "Mogul, Mom & Maid: The Balancing Act of the Modern Woman" (Magnata, mãe & empregada doméstica: o ato de equilíbrio da mulher moderna, em português), de 2013, ambos inéditos no Brasil. É também criadora de comunidade digital para mulheres que viraram cuidadoras de seus pais e, em 2022, lançou o Dia Nacional da Filha Trabalhadora nos EUA.

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