Descrição de chapéu Todas Beleza

Mulheres negras rompem com o padrão e assumem suas identidades por meio dos cabelos

Crespos e cacheados foram colocados como inferiores e alheios ao ideal eurocentrado de beleza

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Ensaio para reportagem especial de Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Da esq p dir: Em cima: Valeria Mazio Costa, 47 (azul), Bruna da Silva Bagnato, 28 (preto) e Eliane Cristina de Andrade, 51 (verde). Embaixo: Veronica Mara Brito, 33 (vinho) e Juliana Goncalves dos Santos, 38 (amarelo) - Eduardo Knapp / Folhapress

São Paulo

Expressão da identidade negra, cabelos crespos e cacheados foram rejeitados durante séculos —não apenas no Brasil, mas em todos os países influenciados por um ideal eurocentrado de beleza. Colocados como inferiores, eles foram presos, alisados a pente de ferro e submetidos a produtos químicos, num processo de adoecimento de mulheres negras.

"O racismo interfere profundamente na forma de viver e sentir. Ele não só nega acesso aos espaços, à saúde e à educação, mas também adoece mentalmente, e a autoestima é uma das áreas afetadas", afirma Rafaele Queiroz, doutoranda em antropologia social pela Universidade Federal do Amazonas.

Ao romperem com os padrões racistas e abraçarem sua identidade, mulheres negras têm fortalecido a autoestima e experimentado a liberdade de ser como querem.

Durante a infância e parte da adolescência, Verônica Brito, 33, tinha os cabelos crespos trançados pela mãe. Aos 15, quando começou a trabalhar como modelo, ela passou a usar entrelaçamento —método de alongamento no qual mechas são costuradas ao cabelo natural, trançado rente à cabeça.

"Era um cacho mais liso, porque com esse cabelo eu era mais aceita pelo mercado e conseguia mais trabalhos. Eu acabei achando que esse cabelo fosse a minha beleza, que só ele era bonito, mas ele era volumoso e acabava escondendo um pouco do meu rosto e da minha identidade", conta.

Verônica alisava quimicamente seus cabelos para facilitar a manutenção. Ela conta que usou o entrelace por cerca de dez anos seguidos, sem pausas para cuidar dos fios, até que desenvolveu alopéciacondição capilar que causa a queda de cabelo.

Retrato de Veronica Mara Santos Brito, 33, empresária, influenciadora digital e modelo - Eduardo Knapp/Folhapress

Foi quando, aos 25, ela decidiu que deveria raspar a cabeça, mesmo sem referências de brasileiras a usarem o corte. "Marquei barbeiro no centro da cidade e fui, mas primeiro levei o aplique num lugar que faz peruca, como um plano B." Depois de raspar seu cabelo, o barbeiro a ensinou a estilizar com uma esponja.

"Na hora que eu olhei para o espelho, vi tudo que ouvi das agências [que não era o ideal]. Veio à tona a minha identidade, o tamanho da minha boca e do meu nariz, e a minha testa estava despida. Saí de lá feliz com o que eu tinha conseguido fazer, me tremendo inteira com a adrenalina, porque foram anos tentando me enquadrar e agora eu estava fazendo o contrário, indo atrás da minha identidade", afirma.

Ela buscou a peruca, mas voltou para casa sem colocá-la. Desse dia até hoje, são oito anos experimentando estilos de cortes curtos, indo de inspirações nos anos 1920 até o platinado atual.

Fisioterapeuta, Valéria Mazio Costa, 47, passou cerca de 30 anos alisando quimicamente os fios. "Sempre gostei do meu cabelo alisado, me sentia bem. Eu achava que seria mais trabalhoso lidar com ele natural, mas isso é um preconceito que a gente vai nutrindo no decorrer da vida e não percebe. Fui vendo que todas as mulheres que fizeram a transição capilar ficaram mais bonitas com cabelo natural", conta.

Retrato de Valeria Mazio Costa, 47, fisioterapeuta - Eduardo Knapp/Folhapress

Ela fez química nos fios pela última vez em 2022, quando decidiu descobrir como eram seus cachos. "Eu não imaginava que gostaria tanto assim. Vejo que as mulheres pretas estão mais empoderadas com essa aceitação, e isso aumenta mesmo a autoestima. É bom saber que não preciso de química, o natural é lindo", fala.

Jornalista, gerente de projetos e pesquisadora, Juliana Gonçalves dos Santos, 38, também se inspirou em outra mulher negra para deixar o relaxamento. Aos 19 anos, ela acompanhou o processo de transição capilar de sua mãe, que por anos alisou os fios para ser aceita no mundo corporativo.

"Eu nunca tive vontade de alisar o cabelo, muito por conta desse reforço positivo da minha mãe. Eu queria deixar ele livre, mas não tinha vontade de alisar, e segui assim na adolescência. Com um pouco mais de avanço na indústria dos cosméticos, surgiu o relaxamento como uma forma de diminuir volume", conta.

Retrato de Juliana Goncalves dos Santos, 38, jornalista e pesquisadora - Eduardo Knapp/Folhapress

Depois de parar a química, ela passou um período brincando com colorações, até que, aos 27, engravidou e passou a usar o cabelo totalmente sem química. Na pandemia, Juliana se lembrou de uma vontade antiga de ter os cabelos endredados em locks —penteado no qual os fios são embaraçados em mechas, e decidiu que era a hora de realizá-la.

"Quatro anos depois, sigo muito apaixonada e falo que, se eu soubesse que ia gostar tanto de ter os cabelos endredados, não teria esperado tanto tempo. Mas sei que ter mais de 30 anos, não dever nada para ninguém e trabalhar com assuntos que me permitem ter essa liberdade com meu próprio corpo influenciam, porque é claro que tem muito preconceito", diz.

Empregada doméstica, Elaine Cristina de Andrade, 51, também teve sua autoestima construída na infância e buscou fazer o mesmo com suas filhas, hoje com 16 e 24 anos. Ela aprendeu a fazer diferentes tranças para cuidar dos cabelos das três em casa, e hoje trabalha como trancista nos finais de semana.

Retrato de Eliane Cristina de Andrade, 51, empregada doméstica e trancista - Eduardo Knapp/Folhapress

"Um dia estou de trança, depois de cabelo natural... Dá para fazer tanta coisa no nosso cabelo, e eu gosto de mudar. Estou sempre procurando penteados afro e espero que outras meninas negras vejam que, a partir do momento que você aceitar o seu cabelo, vai ver a diversidade que ele traz", afirma.

Já Bruna da Silva Bagnato, 28, que trabalha como social media, prefere os fios alisados. Ela conta que sempre teve dificuldade para cuidar do cabelo, que tem um cacho fechado, e por isso pedia aos pais para alisar. O pedido foi atendido aos 14 anos, e desde então ela usa assim.

"Mas foi única e exclusivamente por conta de eu não saber cuidar, porque graças a Deus nunca sofri nenhum tipo de preconceito por conta do meu cabelo na época que ele era cacheado. Hoje eu não lembro de como eu sou com o meu cabelo natural, às vezes tenho uma vontade de passar pela transição, mas fico pensando no trabalho que vai me dar e acabo mantendo assim", conta.

Retrato de Bruna Bagnato, 28, social mídia - Eduardo Knapp/Folhapress

Para Rafaele Queiroz, da Universidade Federal do Amazonas, mais importante do que a forma como se usa o cabelo, é a liberdade. "Tentar manter um padrão é cruel. Somos povos diversos, então é libertador quando a mulher negra percebe que não há necessidade de manter um padrão capilar, ela poder fazer o que quiser, raspar, alisar, colocar peruca. Isso também é saudável, porque permite experimentar outras formas de ser."

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