Descrição de chapéu The New York Times

Indústrias farmacêuticas e médicos disputam futuro dos transplantes fecais

Terapia é usada contra infecção por Clostridioides difficile e tem sido testada contra obesidade e parkinson

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​Andrew Jacobs
Cambridge (EUA) | The New York Times

Uma nova guerra está sendo travada nos tratamentos de saúde, com centenas de milhões de dólares em jogo e milhares de vidas na balança. A batalha das companhias farmacêuticas contra médicos e grupos de defesa de pacientes está sendo travada sobre a mais improvável das substâncias: excremento humano. 

A luta é sobre o futuro dos transplantes de microbiota fecal (FMT na sigla em inglês), tratamento revolucionário que se mostrou incrivelmente eficaz no combate à Clostridioides difficile, uma infecção bacteriana debilitante que atinge 500 mil americanos por ano e mata 30 mil. 

Cultura de bactérias fecais em tubos de ensaio
Cultura de bactérias fecais - Kayana Szymczak/The New York Times

A terapia transfere matéria fecal de doadores saudáveis para o intestino de pessoas doentes, restaurando o funcionamento benéfico da comunidade de micróbios intestinais que foi dizimada por antibióticos. Os cientistas veem potencial no uso desses organismos para tratar doenças como diabetes e câncer. 

No centro da controvérsia está uma questão de classificação: a microbiota fecal que cura C. diff é uma droga, ou é mais como órgãos, tecidos e produtos do sangue que são transferidos de pessoas saudáveis para tratar as doentes?

A resposta vai determinar como a Administração de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos (FDA na sigla em inglês) regulamenta o procedimento, quanto custará e quem lucrará com isso.

Em 2013, a FDA anunciou uma decisão provisória de regulamentar a terapia como uma nova droga, mas disse que continuará estudando a matéria antes de chegar a uma decisão final —o que é esperado para breve.

Críticos dizem que a abordagem se baseia em ciência antiquada e poderá levar a custos elevados para os pacientes, a maioria dos quais hoje conta com um banco de fezes sem fins lucrativos em Cambridge. Está em jogo, segundo alguns cientistas, o futuro de terapias pioneiras que utilizam o microbioma humano —trilhões de organismos que colonizam o corpo e são cada vez mais considerados críticos para o desenvolvimento saudável do cérebro e da função imunológica.

"As pessoas têm bons motivos para se preocupar, porque para muitos pacientes o transplante fecal é uma questão de vida ou morte", disse Catherine Duff, fundadora do grupo de pacientes Fundação do Transplante Fecal. "A preocupação é que a ganância corporativa impeça o acesso dos pacientes."

Enquanto a FDA se aproxima de uma decisão final, os dois lados aumentam a pressão. Mais de 40 importantes gastrenterologistas e médicos de doenças infecciosas escreveram recentemente ao órgão pedindo que reveja sua abordagem. 

O doutor Alexander Khoruts, gastrenterologista na Universidade de Minnesota, disse que teme que a FDA favoreça os interesses do que ele chama de "cartel da droga do cocô", grupo de empresas que buscam a aprovação de novas maneiras de entregar os ingredientes ativos em fezes transplantadas. Três dessas empresas, Rebiotix, Seres Therapeutics e Vedanta Biosciences, levantaram dezenas de milhões de dólares de investidores e recentemente formaram uma associação para promover seus interesses junto à FDA.

"Uma quantia obscena está sendo aplicada por companhias que tentam lucrar com um produto da natureza", disse Khoruts. "Não acho que existam vilões definidos nisso, mas temo que os reguladores não estejam a par da ciência mais recente e que os interesses dos investidores consigam superar os dos pacientes."

Executivos de farmacêuticas e alguns médicos afirmam que o modelo droga ajudará a garantir a eficácia e a segurança em longo prazo de uma terapia cuja mecânica ainda é mal compreendida.

"O primeiro princípio da medicina é não causar danos, e no momento não temos um registro em longo prazo dos efeitos adversos da FMT", disse o doutor Sahil Khanna, professor-associado de gastrenterologia na Clínica Mayo que conduziu testes clínicos de transplantes fecais financiados pela indústria. "Também precisamos nos afastar de simplesmente transferir cocô de uma pessoa para outra."

Especialistas no campo de bioética e muitos médicos estão pressionando a FDA para encontrar uma nova categoria regulatória que reflita a natureza inovadora das terapias de microbiota.

Assim como na guerra sobre os preços dos medicamentos vendidos sob prescrição, as "guerras do cocô", como descreveu um médico, refletem antigas tensões no sistema de saúde dos Estados Unidos entre as companhias farmacêuticas e os pacientes.

As fezes humanas são uma potencial mina de ouro, afinal, tanto para pesquisadores médicos quanto para os fabricantes de drogas.

Segundo a firma de análises GlobalData, o mercado de tratamento baseado em drogas para C. diff deverá alcançar US$ 1,7 bilhão (cerca de R$ 6 bilhões) até 2026, contra US$ 630 milhões (mais de R$ 2 bilhões) em 2016. O crescimento está ligado aos altos índices de C. diff, que acompanham o uso excessivo de antibióticos, deixando os pacientes mais vulneráveis a infecções.

Inspirados pelo sucesso dos transplantes fecais para C. diff, cientistas estão correndo para desenvolver tratamentos semelhantes para uma série de problemas e doenças, entre os quais obesidade, autismo, colite ulcerativa, alzheimer e parkinson.

Os investidores também tomaram nota e estão despejando dezenas de milhões de dólares em startups em busca do próximo avanço em microbiota.

"Todo o campo está gritando 'avançar mais depressa', como ninguém poderia imaginar", disse Lee A. Jones, executiva-chefe da Rebiotix, que está testando dois produtos para tratar C. diff. "O microbioma tem o potencial de mudar o modo como avaliamos e tratamos doenças." 

Tal exuberância está muito distante do que os pesquisadores experimentaram quando primeiro tentaram vender o poder curativo das fezes humanas.

Mark Smith, microbiólogo no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), estava falando a um grupo de executivos de farmacêuticas quando um deles o interrompeu para perguntar se a reunião era uma brincadeira. "Não posso acreditar que você desperdiçou meu tempo com essa ideia maluca", disse o homem, lembrou Smith. 

Isso foi em 2012. Mais tarde naquele ano, ele ajudou a fundar a OpenBiome, banco de fezes sem fins lucrativos que hoje fornece a maior parte da matéria fecal para transplantes nos Estados Unidos. Três anos atrás, ele iniciou sua empresa de medicamentos, a Finch Therapeutics, que levantou US$ 77 milhões (cerca de R$ 280 milhões). 

Na última década, dezenas de milhares de americanos com C. diff foram curados com transplantes fecais, muitas vezes com uma única dose capaz de recuperar pacientes à beira da morte. O tratamento tem mais de 80% de índice de sucesso, segundo vários estudos, e muitos pacientes se sentem melhor horas após receberem o transplante, que geralmente é feito através de colonoscopia ou de cápsulas contendo matéria fecal desidratada.

 

A FDA não aprovou formalmente a terapia, mas suspendeu a aplicação de suas regras para pacientes que não tiveram sucesso com antibióticos, enquanto resolve qual é a melhor maneira de regulamentar o regime.

Até recentemente ele era às vezes realizado em casa por pacientes desesperados, usando um enema, solução salina e fezes de um parente. Duff, a chefe do grupo de pacientes de C. diff, atribui sua própria recuperação da doença a um preparado caseiro que seu marido fez com suas próprias fezes no liquidificador. 

A FDA não quis dar declarações para esta reportagem. Até que a agência termine sua decisão, muitas companhias de seguros não darão cobertura à terapia. 

Tratar transplantes fecais como uma nova droga exige que as empresas farmacêuticas submetam os produtos propostos a um extenso processo investigativo para avaliar sua eficácia e segurança, o que pode custar milhões de dólares. 

Os críticos temem que a designação permita que um laboratório ganhe o direito exclusivo de vender um tratamento de transplante fecal por até 12 anos, medida que segundo eles prejudicaria a inovação.

Alguns também temem que os pacientes que não podem pagar por uma terapia de propriedade de uma empresa recorram a remédios caseiros, colocando-os em risco de adquirir patógenos de fezes não selecionadas.

Por enquanto, a maior parte do material usado em transplantes fecais vem da OpenBiome, o banco de fezes público em Cambridge que encara sua missão com humor e seriedade. Emojis de cocô gigantes decoram seus escritórios, as salas de conferência levam os nomes de partes do trato intestinal e os bolos de aniversário dos funcionários são sempre do mesmo sabor: chocolate. 

A organização produz de 900 a 1.000 tratamentos por mês, na maioria líquidos em frascos que são embalados em gelo seco e enviados para clínicas de todo o país. Qualquer odor desagradável é confinado a uma instalação de produção rigidamente selada, onde os empregados em macacões brancos especiais para atividades perigosas manipulam com habilidade sacos plásticos cheios de fezes.

O material vem de doadores que ganham US$ 40 (quase R$ 150) por evacuação e devem passar por testes intensivos e exames médicos regulares. "É mais difícil ser um doador de fezes do que entrar no MIT", disse Carolyn Edelstein, diretora da organização. 

Em 2012, Edelstein criou a OpenBiome com Smith, hoje seu noivo, depois que seu primo contraiu C. diff e, enfrentando uma espera de seis meses pelo procedimento, o fez em casa com as fezes de um amigo.

Alguns meses depois eles abriram a OpenBiome com dinheiro inicial de uma fundação e enviaram seis tratamentos naquele primeiro ano. "É uma viagem maluca", disse Edelstein enquanto mostrava uma sala cheia de congeladores gigantes que abrigam milhares de amostras selecionadas.

Mas a OpenBiome e outros bancos de fezes enfrentam um futuro incerto. As empresas farmacêuticas, que vêm lutando para canalizar pacientes para os estudos clínicos necessários para a aprovação da FDA, gostariam que as autoridades federais restringissem a capacidade dos bancos de fezes de distribuir matéria fecal, na esperança de que mais pacientes se inscrevam nos testes.

A FDA intensificou a supervisão da produção da OpenBiome, levando a testes mais rigorosos e preços mais altos, que duplicarão para US$ 1.600 (cerca de R$ 5.900) neste mês. 

Os defensores dos pacientes preveem que os preços aumentarão exponencialmente se a FDA conceder exclusividade no mercado a uma das empresas que estão nas etapas finais de testar alternativas aos transplantes de fezes "in natura".

"É muito frustrante ver a hiper-regulamentação mais uma vez estragando uma boa coisa em tratamentos de saúde", disse a doutora Colleen Kelly, gastrenterologista da escola de medicina da Universidade Brown.

Seus pacientes compartilham sua preocupação. Stephen Shaw, 66, um motorista de caminhão aposentado, passou grande parte do ano passado preso a um banheiro enquanto lutava com a C. diff. Diabético, Shaw adquiriu o problema intestinal como muitas pessoas: durante a hospitalização por uma série de infecções tratadas com diversas rodadas de antibióticos. 

"Eu não podia ir a nenhum lugar com medo de explodir", disse ele, lembrando as muitas vezes em que se sujou. "Minha vida estava destruída."

No final de dezembro, Kelly administrou um transplante fecal via colonoscopia, e em poucas horas Shaw começou a se sentir melhor. No Natal, seus movimentos intestinais tinham voltado ao normal. 

"Nunca imaginei que a solução para o meu pesadelo fosse tão simples", disse ele. "Só espero que as grandes farmacêuticas não o tornem inacessível para pessoas como eu."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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