Descrição de chapéu The New York Times

Como sobreviver a uma quarentena na China

Passei dez dias em uma instalação chinesa após ser exposta à gripe suína

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KJ Dell'antonia
Nova York | The New York Times

Para evitar a propagação do novo coronavírus, milhares de pessoas em todo o mundo têm sido postas em quarentena —algumas voluntariamente, no conforto de suas casas, outras em dormitórios improvisados com guardas armados, em hotéis ou em navios de cruzeiro. Seus planos são revirados, o futuro é incerto e, para a maioria de nós, não importa que nos consideremos racionais sobre o risco, não importa que imaginemos que manteremos a calma em uma crise —essa é uma receita para o pânico.

Pergunte-me como eu sei.

Em junho de 2009, meu marido e eu voamos para Pequim com nossos três filhos, então com 3, 5 e 7 anos, e minha mãe, para adotarmos mais uma filha, também de 3 anos. Nós planejamos alguns dias para nos aclimatarmos antes de viajar para o lar provisório de nossa nova filha, mas no segundo dia, depois de uma visita aos jardins do Parque Beihai, o Blackberry do meu marido tocou. Era um representante do governo chinês, pedindo-nos para voltar ao nosso hotel imediatamente.

Descobriu-se que a família na fileira à nossa frente no avião tinha dado positivo no teste de H1N1 —a gripe suína. O que isso significava, na China em 2009, era que poderíamos esperar sermos testados, também, e então hospitalizados ou levados para uma instalação de quarentena.

Não seríamos os únicos americanos nessa situação —tínhamos ouvido rumores de que o prefeito de Nova Orleans e sua mulher foram hóspedes do governo chinês, juntamente com uma banda inteira da Califórnia—, mas de acordo com a Embaixada dos Estados Unidos seríamos a única família com crianças pequenas envolvida. As autoridades americanas não sabiam como isso seria tratado, mas fomos solicitados a cooperar, e o fizemos.

Tenho utilizado o verbo "solicitar". É preciso, mas apenas até certo ponto. Fomos "solicitados" em todas as etapas, mas não havia alternativas. E eu digo que "cooperamos", o que também é preciso, mas é uma palavra muito tranquila para nossa reação incrédula. Parece terrível hoje —o oposto do que você esperaria de um bom cidadão global—, mas discutimos. Nós tentamos negociar, pechinchar. Como aquilo podia estar acontecendo? Mas estava.

Em nossa defesa, estávamos assustados, sobre a nossa saúde e sobre nossos filhos. E estávamos com raiva, não da China, exatamente, mas do destino.

Meu marido deu positivo para a gripe e foi trancado em um quarto de hospital. O resto de nós suportou uma onda de calor na periferia de Pequim, no que tinha sido um resort opulento para autoridades comunistas de alto escalão e agora era essencialmente uma ruína, com um guarda armado na entrada.

Nós não falávamos mandarim, e tínhamos que adivinhar o que se esperava de nós. Duas mulheres jovens com rostos sérios nos mostraram nossos quartos. Elas abriram uma porta para meu menino de 7 anos e outra para minha mãe, parecendo esperar que cada membro da família se separasse. Mas ninguém se opôs quando eu mantive as duas crianças menores nos braços e entrei em apenas um quarto. Elas me deram as chaves. Apontaram para garrafas de água. E então foram embora. No minuto em que seus passos sumiram no corredor, meu filho de 7 correu para o meu quarto, chorando. Puxei-o para dentro antes que alguém pudesse ver. Havia um buraco na parede, ele disse, e mofo no quarto todo, e ele estava com medo. Eu também.

 

Eu disse com medo? Eu estava apavorada.

É o medo de que me lembro mais vividamente. Não era apenas que eu não entendesse o que devia fazer; era que eu não sabia o que ia acontecer. Poderíamos sair dos quartos? Entraríamos em apuros se eles nos encontrassem aqui, todos juntos? E se eu ficasse doente? E se as crianças ficassem doentes? Será que as tirariam de mim? Quanto tempo até que pudéssemos ir para casa?

Saí do quarto. Eu não conseguia ficar parada. Lembro-me de perseguir o único oficial que falava inglês em seu escritório e encurralá-lo, tentando forçá-lo a percorrer todas as possibilidades comigo, como se por nomeá-las eu pudesse dobrá-las à minha vontade. Ele balançou a cabeça, recusando-se a responder, e finalmente se levantou e saiu, rejeitando a mulher louca que não conseguia simplesmente aceitar que nós dois estávamos à mercê de acontecimentos que não podíamos controlar. Como, perguntava o olhar dele, eu havia atingido a idade adulta sem aprender a aceitar que às vezes você só tem que navegar as ondas?

A quarentena é uma das muitas salas de espera da vida, e um círculo infernal para as pessoas criadas na ilusão de que podemos controlar nossos destinos. Preferimos acreditar que tudo pode ser superado se apenas nos esforçarmos. Mas não há como se esforçar em quarentena. Existe apenas esperar, e, se você quiser manter o domínio da sua sanidade mental, desapegar. O que vem depois? Ninguém sabe. É por isso que existe a quarentena, em primeiro lugar.

Campo de quarentena no Paquistão preparado para receber quem regressar do Irã - Banaras Khan/AFP

No quarto dia, eu tinha parado de perseguir o oficial que falava inglês ou de ligar freneticamente para a embaixada. A resposta a todas as perguntas que fiz foi "depende", e a única coisa de que eu não dependia era eu.

Começamos a seguir o exemplo das pessoas ao nosso redor, todos cidadãos chineses. Usávamos nossas máscaras para as refeições e fazíamos caminhadas ao redor do pátio à tarde, mantendo distância dos outros presos. (Não há confraternização em quarentena, mesmo quando se fala a língua.)

À medida que os dias passavam devagar, caímos em uma rotina de banhos frios e ficar deitados muito quietos no chão de ladrilhos entre as verificações de febre, duas vezes por dia, tentando decifrar os desenhos animados na TV.

"Por que você acha que a placa está flutuando no ar sobre as ovelhas?", alguém perguntava, e contemplávamos aquilo como mais um mistério da nossa nova vida.

Meu marido se recuperou da gripe e voltou para o hotel, mas como potenciais incubadores tivemos de continuar esperando. O oficial que falava inglês, uma vez que parei de persegui-lo, começou a tentar nos deixar mais confortáveis. Cada um de nós ganhava uma única Coca-Cola gelada por dia, e um conhecido foi autorizado a nos enviar um estoque de batatas Pringles em sabores inesperados: camarão, caranguejo, peixe-bola de Hong Kong. Minha mãe, que tinha roubado todo o Nescafé instantâneo do hotel na noite em que foram nos pegar, descobriu como fazer café gelado.

Finalmente, depois de dez dias sem sintomas, fomos informados de que podíamos sair. Com o táxi a caminho, eu chamava meu filho mais velho para o corredor. "Traga as Pringles", disse.

Caminhamos para cima e para baixo. Atrás de cada porta havia alguém no meio da mesma viagem incerta que tínhamos acabado de fazer, mas com a vantagem de que podiam entender o desenho animado sobre as ovelhas. Eu queria dar a uma pessoa algo mais para pensar.

"Onde há alguma família com crianças?", sussurrei para meu filho, e ele apontou para uma porta. Aquela.
"Prepare-se para correr", eu disse a ele, um garoto que nunca tinha brincado de apertar campainhas em toda a sua vida protegida. Colocamos as Pringles na frente da porta, e eu bati firme, então peguei a mão dele e arrancamos em direção à escada.

Nunca soubemos se os nossos companheiros sofredores apreciaram as Pringles. Estimava-se que entre 11% e 21% da população mundial estivessem infectados com o vírus durante a pandemia, e que mais de 284 mil pessoas morreram. A vacina foi desenvolvida. Novos casos diminuíram. O mundo seguiu em frente.

Nós tínhamos tido sorte. Fomos colocados em quarentena. Depois saímos. E nunca houve, em nenhum momento, alguma coisa que eu pudesse fazer sobre isso.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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