Porta-voz do coronavírus, Mandetta faz acenos à economia, mas dobra a aposta ao defender isolamento

Ministro da Saúde muda o tom do discurso de acordo com cobranças de Bolsonaro, aumento de casos da doença e pressão de aliados

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Brasília

O avanço de casos do novo coronavírus e o impacto da crise nos planos do governo vêm levando o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a mudar seu discurso de acordo com o aumento do número de casos no país, as cobranças do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e a pressão de entidades e aliados.

Ainda em janeiro, quando não havia casos confirmados no Brasil, o ministro já falava em ter cautela, mas sem pânico.

O cenário, restrito à China na época, passou a ser monitorado por meio de um centro de emergência criado pelo Ministério da Saúde.

Mandetta dizia que o país estava preparado e que os dados iniciais apontavam para uma infecção semelhante a uma gripe, mas que precisava de alerta em casos graves.

Aos poucos, com a evolução da doença pelo mundo, Mandetta foi modulando o tom de sua fala; ora elevava a gravidade devido à epidemia ora amenizava-a cada investida do presidente que pretendia minimizar a crise.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta - Pedro Ladeira - 30.mar.2020/Folhapress

Nesta segunda (30), ele posicionou publicamente diante da pressão que vem sofrendo de Bolsonaro para flexibilizar o discurso.

“No momento, devemos manter o máximo grau de distanciamento social para que a gente possa, nas regras que estão nos estados, dar tempo para que o sistema [de saúde] se consolide em sua expansão”, afirmou o ministro, frisando que esse distanciamento não significa “isolamento absoluto”.

“A pessoa pode fazer uma caminhada, é bom para a parte respiratória. Mas o máximo possível que puder não expor sua família, seus idosos, seu núcleo familiar, melhor.”

O presidente insiste na retomada das atividades, enquanto a Saúde vem fazendo orientações para desestimular a aglomeração de pessoas.

“É preciso entender que vamos ter um código de comportamento, de distanciamento entre pessoas, para que a gente não tenha uma paralisia e morra de paralisia, mas também não tenha um frenesi que cause um megaproblema.”

As idas e vindas no discurso indicam não só influência da avaliação técnica da saúde como do cenário político.

Da parte da saúde, a mudança foi visível no último mês. Em entrevista à Folha em fevereiro, após o primeiro caso confirmado, o ministro afirmou que, se o cenário da China se repetisse no Brasil, com cerca de 50 mil casos em São Paulo, seria “administrável”.

Poucos dias depois, com o aumento vertiginoso de casos na Itália, a avaliação começou a mudar.

Mandetta defendeu que a Organização Mundial de Saúde declarasse pandemia em um momento em que a entidade ainda falava apenas em “risco alto a nível internacional”.

Em seguida, em outro sinal mais forte de reconhecimento do impacto da doença, passou a dizer que o vírus é “letal” ao sistema de saúde.

“Não existe nenhum sistema 100% preparado para ser em massa acionado para testes, diagnóstico, internação, isolamento e leitos em CTI.”

O risco de um colapso no sistema de saúde foi citado pelo ministro em reunião com empresários. Segundo ele, o Brasil poderia enfrentar a situação ainda em abril.

O aumento no alerta, porém, não foi bem recebido no Palácio do Planalto. Com os holofotes centrados na saúde e com elogios públicos à sua atuação, Mandetta passou a ser alvo de cobranças de Bolsonaro para suavizar o discurso e, num primeiro momento, cedeu.

Em uma ocasião, chegou a falar na necessidade de não haver histeria, repetindo palavras de seu chefe.

“Não podemos deixar isso se transformar em histeria e desespero! Calma, serenidade, prevenção e ações eficazes são armas importantes para superarmos o coronavírus”, escreveu no Twitter.

Também passou a criticar medidas de paralisação adotadas por governadores para conter a transmissão do vírus e chegou a endossar parte do discurso de Bolsonaro, que defendeu em pronunciamento o fim do “contingenciamento em massa”.

“Temos que melhorar esse negócio de quarentena, foi precipitado, foi desarrumado”, disse o ministro. Para ele, alguns governadores “passaram do ponto”.

Mandetta passou então a ser alvo de críticas até de parte dos médicos. Aliados políticos fizeram um apelo para que o ministro se mantenha firme tanto no cargo quanto na defesa de suas convicções de especialista.

O aconselhamento surtiu efeito, e desde o último sábado ele mudou o tom de novo, voltando a mostrar apoio a medidas de isolamento adotadas pelos estados.

“Ainda não dá para falar: ‘Libera todo mundo para sair’, porque a gente não está conseguindo chegar com o equipamento ‘just in time’ [na hora certa], como a gente precisa”, disse o ministro. “Se sair andando todo mundo de uma vez, vai faltar [atendimento] para rico e pobre.”

Também deu recados a apoiadores do Bolsonaro. “Daqui a duas, três semanas, os que falam ‘vamos fazer carreata” serão os mesmos que vão ficar em casa.”

No sábado, o ministro propôs ao presidente um alinhamento de discurso. A fala foi endossada por outros auxiliares de Bolsonaro, e um acordo foi firmado. Não durou 24 horas. No domingo, o presidente saiu às ruas de Brasília.

Bolsonaro segue insistindo em isolamento apenas dos grupos de risco e fala na retomada do comércio. Mandetta se opôs à ideia nesta segunda-feira (30).

“É só pegar as pessoas com mais de 60 anos e cuidar? Como se essas pessoas estivessem dentro de uma cápsula. Essas pessoas moram com vocês, têm netos, têm filhos, trabalham, pegam ônibus, são ambulantes”, disse.

“Por enquanto mantenham as recomendações dos estados, porque nesse momento temos muitas fragilidades no sistema de saúde.”

Ao mesmo tempo em que reforça as críticas, o ministro tem dado acenos a propostas de Bolsonaro ao afirmar que“ a economia é importante para a saúde” e que uma paralisação total em todo o país seria um “desastre”.

Entre idas e vindas, secretários de saúde e especialistas têm cobrado que a pasta não altere decisões por pressão política e que o ministério mantenha o tom técnico.

“Quando tem duas autoridades falando duas coisas diferentes, isso gera insegurança. Em quem acreditar: no ministério ou no presidente?”, afirmou Alberto Beltrame, presidente do Conass, conselho que reúne secretários estaduais de saúde.

“O que assusta neste momento é que parecem dois mundos paralelos. Desde que o presidente negou a gravidade da crise sanitária, há essa falta de sincronia entre o que ele e o Ministério da Saúde dizem”, afirma Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP.

A cobrança também vem de aliados, que sugerem até a saída do ministro caso haja aumento na interferência. Ele nega uma possível saída.

“A partir do momento que o Ministério da Saúde for coagido a mudar a questão técnica, o Mandetta tem que pedir o boné e sair de espinha ereta”, diz o deputado Fábio Trad (PSD-MS), primo do ministro.

“Entre a ciência, que hoje é prestigiada pelos líderes mundiais, e a credulidade do presidente, Mandetta tem que ficar com aquilo que é a formação dele. É preferível sair com as convicções intocadas do que ficar como títere.”

O discurso de Mandetta e a evolução da crise do novo coronavírus

28.jan
(em coletiva de imprensa, quando subiu nível de alerta; país tinha três casos suspeitos e nenhum confirmado)
“É um momento de tranquilizar a população brasileira. Não temos hoje nenhum caso sustentado de circulação no Brasil. Não é motivo nenhum para termos qualquer tipo de pânico, mas de sermos cautelosos. Estamos preparados para monitorar todo esse quadro e aguardar o que a ciência coloca"


26.fev
(após primeiro caso confirmado no Brasil)
"É uma gripe, mais uma gripe que vamos atravessar. E sua transmissão é similar à de gripes que a humanidade já superou. Com certeza vamos passar por essa situação investindo em pesquisa, ciência e clareza de informações"

28.fev
(em entrevista à Folha após primeiro caso confirmado)
“Vamos ver como o vírus vai se comportar no verão, em um país tropical, com diferenças culturais e comportamentais. Devemos ter a cautela necessária para não deixar de considerar a possibilidade de uso em massa do nosso sistema de saúde, por causa de uma epidemia de grandes proporções, embora não acho que isso vá ocorrer"

“Se a gente repetir o cenário que ocorreu na China e ocorre em outros países, vemos que houve um aumento e agora a China estabilizou, e parece demonstrar redução de casos, com letalidade baixa. Se se comportar dessa maneira, vamos supor, 50 mil casos em uma cidade como São Paulo, que é do tamanho de Wuhan, é perfeitamente administrável. Agora, como o inimigo é novo, se tem surto, uma espiral epidêmica, e tem 100 mil, 200 mil, 500 mil casos, 1 milhão, aí você tem uma epidemia franca”


11.mar
(audiência na Câmara dos Deputados após OMS declarar pandemia)
“O vírus é extremamente duro, e ele derruba o sistema de saúde. Se ele não tem uma letalidade individual elevada, ele tem uma letalidade ao sistema de saúde"

“Estamos com metrô aberto, cinema aberto, teatro aberto. Estamos com tudo funcionando. Não estamos fazendo restrição coletiva. Seria uma irresponsabilidade da minha parte fazer. Pode ser necessário? Hoje me questionaram sobre a conveniência ou não de jogar as partidas de futebol com o portão fechado. Pode acontecer. Mas no momento não tenho porque dizer: fecha o portão.” [dois dias depois, pasta publicou recomendações aos estados, e uma delas era adiamento de eventos em áreas de transmissão local do vírus]


15.mar
(entrevista à Folha, após Bolsonaro ir a manifestações)
“Todo mundo tem que fazer sua parte. Quem não está em transmissão sustentada hoje, daqui a uma semana pode estar, daqui a duas vai estar. Quanto mais rápido tiver transmissão, maior vai ser a necessidade de determinação de paralisação. É ilegal [ir a manifestação]? Não. Mas a orientação é não. E continua sendo não para todo mundo”

“Você tem as recomendações. Mas não é todo mundo que segue ao mesmo tempo. É bom todo mundo começar a se organizar. Igrejas, por exemplo. Já está na hora de pastores se reunirem e falarem: olha, a maioria das pessoas que vem no culto é idoso [grupo de risco]. Imagina aqueles lugares fechados socados de gente, permanecendo uma hora, tem culto de duas horas. Essas pessoas olham e falam assim: 'Ah, mas o metrô está funcionando'. Se todo mundo continuar fazendo tudo, vai chegar uma hora em que o metrô vai ter que parar de funcionar"


17.mar
(em coletiva de imprensa após primeira morte ser confirmada no Brasil)
“É uma doença que tem abalado sistemas de saúde do mundo inteiro. Não existe nenhum país do mundo com um sistema de saúde 100% preparado para ser em massa acionado para testes, diagnóstico, internação, isolamento e leitos em CTI. Estamos vendo países de primeiro mundo tendo problemas graves em relação a colapso de sistemas de saúde”


22.mar
(em evento do Palácio do Planalto com empresários)
“Claramente no final de abril nosso sistema entra em colapso. O que é um colapso? Às vezes as pessoas confundem colapso com sistemas caóticos, com sistemas críticos, aonde você vê aquelas cenas, pessoas nas macas. O colapso é quando você pode ter o dinheiro, você pode ter o plano de saúde, pode ter a ordem judicial, mas simplesmente não há um sistema para você entrar. É o que está vivenciando a Itália, um dos países de primeiro mundo, atualmente, não tem aonde entrar”

(após ser questionado por jornalistas ao fim da reunião)
“Nós vamos ter estresse, mas vamos passar por essa sem colapso”


22.mar
(em coletiva de imprensa)
“Se fosse algo distribuído no ano, não teria problema nenhum, e seria só uma gripe e resfriado. Mas como não temos imunidade, isso ocorre de forma abrupta”

“É como se tivesse uma só geladeira e todo seu bairro precisasse usar”


24.mar
(após videoconferência de Bolsonaro com governadores)
"Esse travamento absoluto do país para a saúde é péssimo. Eu continuo precisando de pré-natal. Tem médico fechando consultório. Daqui a pouco, eu estou lá cuidando de um vírus e cadê o meu pré-natal? Cadê o cara que está fazendo a quimioterapia? Cadê o pessoal que está precisando fazer o diagnóstico? Cadê as clínicas de ultrassom?"


25.mar
(em coletiva de imprensa, após pronunciamento de Bolsonaro)
“Temos que melhorar esse negócio de quarentena, foi precipitado, foi desarrumado”
“Eu vejo a grande colaboração da fala do presidente, de chamar a atenção de que é preciso pensar na economia”
"Que as igrejas fiquem abertas, mas não se aglomerem"


28.mar
(em coletiva de imprensa, após críticas de entidades a postura de Bolsonaro)
"Mais uma razão para a gente ficar em casa parado até que a gente consiga colocar equipamentos na mão dos profissionais [de saúde] que precisam. Se a gente sair andando todo mundo de uma vez, vai faltar para o rico e o pobre (…). Ainda não dá para falar: libera todo mundo para sair porque a gente não consegue chegar com o equipamento just in time a quem precisa"

"Aqueles que falam: essa doença vai matar só 5 mil, 10 mil. Não é essa a conta. Esse vírus ataca o sistema de saúde e da sociedade como um todo, a educação, a economia"
"Vamos construir consenso. Não adianta ter movimento manada assimétrico. Os mesmos que falam: vamos fazer uma carreata de apoio... Os mesmos que fizerem são os mesmos que vão estar em casa."

“Vamos ver se a gente consegue fazer um plano mínimo que contabilize saúde e economia. O presidente está certíssimo quando ele fala que a crise econômica vai matar as pessoas. E estamos certíssimos em trabalhar junto com a economia”​


30.mar
(em coletiva de imprensa, um dia depois de Bolsonaro passear pelo comércio de Brasília)

"É preciso todo mundo entender que vamos ter um código de comportamento, de distanciamento entre pessoas, de respeito, de não aglomeração, de funcionar para que a gente não tenha uma paralisia e morra de paralisia, mas também não tenha um frenesi que cause um megaproblema como nesses países"

"É só pegar as pessoas com mais de 60 anos e cuidar? Como se essas pessoas estivessem dentro de uma cápsula. Essas pessoas moram com vocês, têm netos, têm filhos, trabalham, pegam ônibus, são ambulantes"

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