Lhamas poderão se tornar heroínas do combate ao coronavírus

Cientistas pesquisam anticorpos do camelídeo, que tiveram sucesso em neutralizar Sars-CoV-2

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Jillian Kramer
The New York Times

Winter (Inverno) é uma lhama de 4 anos, cor de chocolate, com pernas esguias, orelhas ligeiramente tortas e cílios de causar inveja. Alguns cientistas esperam que ela se torne uma figura importante no combate ao coronavírus.

Winter não é um camelídeo com superpoderes. Simplesmente foi a lhama de sorte escolhida por pesquisadores na Bélgica, onde ela vive, para participar de uma série de estudos com vírus envolvendo a Sars (síndrome aguda respiratória grave) e Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio). Ao descobrir que seus anticorpos repeliram essas infecções, os cientistas apostaram que esses mesmos anticorpos poderiam neutralizar o novo vírus que causa a Covid-19. Eles estavam certos, e publicaram seus resultados na terça-feira (5) na revista Cell.

Os cientistas usam há muito tempo lhamas na pesquisa de anticorpos. Na última década, por exemplo, anticorpos desses animais foram utilizados em pesquisas dos vírus HIV e da gripe influenza que descobriram terapias promissoras para ambos.

Winter, lhama usada em pesquisa de anticorpos contra o coronavírus na Bélgica
Winter, lhama usada em pesquisa de anticorpos contra o coronavírus na Bélgica - VIB-UGent Center for Medical Biotechnology/Divulgação/AFP

Os seres humanos só produzem um tipo de anticorpo, feito de dois tipos de cadeias de proteínas —pesadas e leves— que juntas assumem a forma de um Y. As proteínas de cadeias pesadas ocupam o Y inteiro, enquanto as proteínas de cadeias leves só tocam os braços do Y.

As lhamas, por sua vez, produzem dois tipos de anticorpos. Um deles é semelhante em tamanho e constituição aos anticorpos humanos. Mas o outro é muito menor; tem apenas 25% do tamanho dos anticorpos humanos. O anticorpo da lhama também forma um Y, mas seus braços são muito mais curtos porque ele não tem cadeias leves de proteínas.

Esse anticorpo mínimo consegue acessar bolsos e reentrâncias menores nas proteínas espinhosas —as quais permitem que vírus como o coronavírus penetrem nas células hospedeiras e nos infectem—, o que os anticorpos humanos não conseguem.

Os anticorpos das lhamas também são manipulados com facilidade, segundo Xavier Saelens, virologista molecular na Universidade de Ghent, na Bélgica, e um dos autores do novo estudo. Eles podem ser ligados ou fundidos com outros anticorpos, incluindo os humanos, e continuam estáveis apesar dessas manipulações.

Esse anticorpo é uma característica genética que as lhamas compartilham com todos os camelídeos, a família de mamíferos que inclui alpacas, guanacos e dromedários.

Os tubarões também têm esse anticorpos menores, mas "não são um modelo experimental ideal, e são muito menos simpáticos que as lhamas", disse Daniel Wrapp, estudante de graduação afiliado à Universidade do Texas em Austin e ao Dartmouth College e coautor da nova pesquisa. Saelens disse que as lhamas são domesticadas, fáceis de manipular e menos teimosas que muitos de seus primos camelídeos. Mas "quando elas não gostam de você, elas cospem".

Em 2016, Saelens, Wrapp e o doutor Jason McLellan, virologista estrutural na Universidade do Texas em Austin, e outros pesquisadores examinaram lhamas —e especificamente Winter— para encontrar um anticorpo menor "que pudesse neutralizar de modo geral muitos tipos diferentes de coronavírus", disse McLellan.

Eles injetaram em Winter proteínas espinhosas do vírus que causou a epidemia de Sars em 2002-2003, assim como a Mers, depois testaram uma amostra do sangue dela. Embora não pudessem isolar um único anticorpo de lhama que funcionasse contra os dois vírus, descobriram dois anticorpos potentes que combatiam separadamente a Mers e a Sars.

Os pesquisadores estavam redigindo suas conclusões quando o novo coronavírus começou a ganhar manchetes em janeiro. Eles imediatamente perceberam que os anticorpos menores da lhama "capazes de neutralizar a Sars muito provavelmente também reconheceriam o vírus da Covid-19", disse Saelens.

Foi o que aconteceu, efetivamente inibindo o coronavírus nas culturas de células, disseram os pesquisadores.

Eles estão esperançosos de que o anticorpo possa ser futuramente usado como tratamento profilático, injetado em pessoas não infectadas, como os profissionais de saúde, para protegê-las do vírus. A proteção do tratamento seria imediata, mas seus efeitos não seriam permanentes, durando apenas um ou dois meses sem injeções adicionais.

Essa abordagem proativa ainda está a pelo menos vários meses de distância, mas os pesquisadores estão avançando para testes clínicos. Novos estudos também poderão ser necessários para verificar a segurança de injetar anticorpos de lhamas em pacientes humanos.

"Ainda há muito trabalho a ser feito antes de tentarmos usar isso na clínica", disse Saelens. "Se funcionar, a lhama Winter merece uma estátua."



Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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