Descrição de chapéu Coronavírus

Protocolo da cloroquina mudou por clamor da sociedade, diz secretária

Mayra Pinheiro cita 'necessidade de atender população menos favorecida', mas admite que não há evidências

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Brasília

Exigência do presidente Jair Bolsonaro, a ampliação no protocolo de uso da cloroquina e hidroxicloroquina também para casos leves do novo coronavírus ocorreu devido a um clamor da sociedade, afirmou nesta quarta-feira (20) a secretária de gestão em trabalho em saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, que coordenou a elaboração do novo documento.

"A motivação para confecção desse documento vem da necessidade de uma resposta à população. Temos mais de 18 mil mortes no Brasil, mais de 327 mil mortes do mundo, e há um clamor da sociedade que chega ao ministério através de sociedades médicas, representações populares e parlamentares pedindo uma manifestação formal", disse.

Usando uma máscara com bandeira do Brasil e o logotipo do SUS, Pinheiro tentou justificar a medida afirmando que havia uma dificuldade de acesso ao medicamento por parte da população.

"No Brasil, para brasileiros de uma determinada classe social, há o direito da prescrição médica desses medicamentos, e para uma camada menos favorecida economicamente, há uma limitação do acesso a essas medicações."

Comprimidos de hidroxicloroquina à venda em Amritsar, na Índia
Comprimidos de hidroxicloroquina à venda em Amritsar, na Índia - Narinder Nanu - 26.abr.20/AFP

"Entendo a preocupação do presidente como eleito pelo povo brasileiro para que ele possa disponibilizar esse direito pelo Ministério da Saúde", completou.

O documento divulgado pela pasta quarta prevê o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina associado a azitromicina para pacientes em todos os estágios da Covid-19, incluindo casos leves. Até então, protocolo do ministério previa uso apenas em pacientes graves ou críticos, monitorados em hospitais.

Segundo a secretária, o medicamento poderá ser usado inclusive antes da confirmação do diagnóstico do novo coronavírus por meio de exames.

Caso o resultado dê negativo, o uso deve ser suspenso. "O que não queremos é que os brasileiros morram aguardando o resultado das sorologias", disse.

Pinheiro confirmou que a nova orientação não foi analisada pela Conitec, comissão que analisa a incorporação de medicamentos no SUS. Ela justificou a falta de avaliação pelo fato de que os remédios já são usados para outras doenças. Em geral, porém, o comitê costuma ser consultado também para mudanças de indicações de uso.

"Estamos falando de disponibilizar uma orientação. Essas medicações já passaram pela Conitec em outras fases. Estamos falando de uma guerra onde precisamos disponibilizar o direito que é clamado por brasileiros", disse.

Embora cite estudos iniciais, Pinheiro reconheceu, porém, que não há evidências científicas de benefícios do uso do medicamento. "Estamos em um período em que mortes ocorrem em volume muito maior do que os estudos que conseguimos publicar para que possamos afirmar os resultados falando de eficácia."

Em seguida, comparou o risco de efeitos adversos a outros medicamentos.

"É uma medicação que tem segurança apesar de eventos adversos comuns a outros fármacos. Temos medicações como paracetamol que podem causar hepatite fulminante e matar as pessoas, e são usadas todos os dias para febre ou dor. Estamos falando de uma pandemia e situação de emergência em que nossa responsabilidade enquanto ministério é usar todos os meios e buscar evidências", afirmou.

Estudos recentes internacionais, publicados em revistas científicas de prestígio, no entanto, não mostraram benefícios do uso da cloroquina em reduzir internações e mortes e apontaram riscos cardíacos.

Pinheiro citou parecer do Conselho Federal de Medicina para justificar a decisão rápida.

Em abril, o conselho definiu que médicos podem prescrever o uso do medicamento também para casos leves e uso domiciliar, desde que com consentimento do paciente sobre os riscos.

"A nós, cabe uniformizar essa recomendação e garantir que essas medicações possam ser ofertadas, e para isso não precisamos nesse momento de mais autorizações", afirmou.

Questionada sobre a determinação de Bolsonaro em alterar o protocolo, a secretária tentou minimizar a interferência.

"Esse trabalho vem sendo feito já algum tempo. Em momento algum um princípio ético ou científico foi negligenciado ou conduzido apenas por determinação de uma autoridade", disse.

Segundo o secretário-executivo do ministério, Antônio Elcio Franco, a pasta deve fazer uma nota informativa sobre as mudanças, já apresentadas em parecer técnico divulgado nesta quarta (20), que não tinha assinaturas. A nota será assinada por todos os secretários da pasta ou seus substitutos, informa.

"Se algum membro da minha família estivesse doente, tenho certeza que iria indicar pelo consentimento e oportunidade da vida", disse Franco.

Ele afirmou que a medida foi apresentada a conselhos que reúnem secretários estaduais e municipais de saúde, mas não deixou claro se houve apoio. Secretários de saúde de alguns estados, como São Paulo, no entanto, têm dito que não devem adotar a mudança devido à falta de evidências.

Em nota, o Conass, conselho que reúne secretários estaduais de saúde, negou que a medida tenha sido discutida pelo grupo e disse que o documento é de "única responsabilidade" do governo federal.

"É sabido, e o mencionado documento assim expressa, que não há evidências científicas que sustentem a indicação de quaisquer medicamentos específicos para a Covid-19."

O conselho questiona ainda a falta de debate sobre outras ações ligadas à pandemia.

"Por que estamos debatendo a cloroquina e não a logística de distanciamento social? Por que estamos debatendo a cloroquina ao invés de pensar um plano integrado de ampliação da capacidade de resposta do Ministério da Saúde para ajudar os estados em emergência?", questionou.

As mudanças também encontraram resistência dentro do ministério.

Secretário de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos, Antônio Carlos Campos de Carvalho não participou da elaboração do documento e pediu demissão da pasta na segunda-feira (18).

Em entrevista à Folha, ele afirma que a pressão para mudança no protocolo colaborou para que antecipasse a saída. Para ele, a medida foi precipitada e pode trazer riscos graves à saúde. “Se induzir arritmia em um paciente propenso, isso pode levar inclusive a óbito”, diz.

Questionada sobre riscos, Pinheiro informou que haverá avaliação prévia antes da indicação do remédio e acompanhamento por eletrocardiograma no 1o, 3o, e 5o dia. Especialistas, porém, têm apontado a possibilidade de falhas nesse controle.

Um dos pontos de preocupação é o acompanhamento por eletrocardiograma. O documento também não deixa claro como deve ser feita a oferta desse exame.

Segundo Pinheiro, a pasta firmou uma parceria com a Sociedade Brasileira de Cardiologia para oferta de telemedicina em apoio à interpretação de eletrocardiograma em municípios sem profissionais habilitados.

Atualmente, o ministério tem 1 milhão de comprimidos em estoque, mas há novos lotes a receber, informou Alvimar Botega, coordenador-geral de assistência farmacêutica de medicamentos estratégicos.

O ministério nega se tratar de um protocolo, mas apenas de um documento com orientações.

“O protocolo precisa ser algo cartorial, e normalmente com obrigação de 'cumpra-se'. O que estamos fazendo é uma orientação, a partir da liberação do Conselho Federal de Medicina, de que médicos brasileiros possam ter livre arbítrio para prescrever", afirmou Pinheiro. "Queremos garantir que o tratamento de tantos brasileiros não seja retardado.”

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