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Subnotificação de 6.000 mortes por coronavírus pode ter sido causada por falha em testes

Em ao menos 61% dos casos houve coleta fora dos padrões indicados

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São Paulo

Problemas no processamento, coleta e análise de testes podem ter tirado das estatísticas oficiais cerca de 6.000 mortes por Covid-19 no Brasil.

São óbitos que extrapolam a média histórica de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) sem causa definida entre 1º de março e 2 de maio. Essas pessoas chegaram a ser testadas para verificar a presença do novo coronavírus e tiveram resultado negativo. Mas, na maioria dos casos, os testes foram feitos fora dos padrões ideais.

Ao menos 61% (3.713) desses pacientes tiveram amostras coletadas fora do período em que o teste utilizado (o RT-PCR) é mais sensível à detecção do novo coronavírus.

Há ainda outros fatores que podem prejudicar a análise e levar a falsos negativos, de acordo com especialistas consultados pela reportagem, e que são reconhecidos por secretarias de Saúde.

Como mostrou a Folha, até o dia 2 de maio 9.805 pessoas morreram pela Covid-19 no país, segundo dados do Sistema de Vigilância da SRAG, do Ministério da Saúde.

O número difere do divulgado à época (6.724) porque a pasta informa as mortes de acordo com a data em que são notificadas pelas secretarias de Saúde, e não quando ocorreram de fato. Atrasos no processo de notificação geram esse descompasso na contabilidade.

Além disso, outras 6.339 mortes por SRAG sem causa definida ultrapassam a média histórica, ou seja, destoam do padrão de óbitos observados no mesmo período de outros anos.

Esse número excedente provavelmente corresponde a mortos por coronavírus, visto que a doença é o que há de novo no cenário.

Por que, então, esses óbitos não foram registrados como Covid-19? A resposta pode estar nos testes e nas condições em que são feitos.

A amostra para o RT-PCR, o meio mais preciso e indicado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a correta realização do diagnóstico, precisa ser coletada em certas condições para que a análise não seja prejudicada.

O ideal é que a coleta do material das vias aéreas do paciente, com o swab (espécie de cotonete grande), seja feita entre o terceiro e o sétimo dia a partir do aparecimento dos sintomas.

Não é uma regra absoluta —e há exceções, dizem três especialistas consultados—, mas esse é o período em que a carga viral costuma ser maior e mais facilmente detectável na secreção do nariz e da faringe.

A partir daí, se a doença se agrava, o vírus se aloja nas vias aéreas inferiores, e a coleta idealmente deveria ser feita de outra forma.

Em 61% dos casos analisados pela reportagem, a coleta foi feita ou muito cedo ou, quando mais tarde, com material das narinas e garganta (o que diminui a confiança no diagnóstico).

Isso aconteceu com maior frequência em São Paulo (2.033 óbitos), Minas Gerais (403) e Paraná (344).

Conseguir realizar a coleta no período ideal, contudo, pode não ser tão simples, especialmente nos casos mais graves. Em geral a doença demora alguns dias para se agravar, levando o paciente a procurar uma unidade de saúde já fora do período ideal.

“Pela evolução natural, a piora costuma acontecer entre o sexto e o décimo dia, o que coincide justamente com o momento em que começa a cair a sensibilidade do PCR para amostras de nariz e de garganta. Se você fizer só o swab, pode vir negativo”, diz a infectologista Carolina Lázari, infectologista do Grupo Fleury.

Em outros casos, o doente não identifica alguns fatores como sintoma (dor de cabeça, por exemplo) e pode informar incorretamente quando a doença começou a se manifestar.

Boa parte dos pacientes, portanto, já chega ao hospital fora da janela em que o teste costuma ser mais sensível ao coronavírus.

“O ideal é testar mesmo assim. Dá uma oportunidade a mais de descobrir a doença, e há casos em que conseguimos identificar mesmo com estado avançado”, diz Alessandro Farias, professor do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenador de uma força-tarefa da universidade que realiza testes para a Covid-19.

“Mas, por mais que o RT-PCR seja sensível, o fato de ter dado negativo não diz que você não tenha o vírus. Às vezes o vírus não está nas vias aéreas”, completa.

Nos casos mais avançados, o ideal seria coletar escarro, mas a doença muitas vezes não provoca tosse com secreção.

Se o paciente está intubado, é preciso fazer aspiração da secreção da traqueia, mas isso exige equipamento adequado, profissionais treinados e laboratórios especializados.

Há também a possibilidade de recolher lavado bronco-alveolar (colhido no pulmão), mas é um método que apresenta altas chances de contaminar os profissionais do momento da coleta.

Mesmo quando é possível recolher a amostra no período ideal, há uma série de outros fatores que podem prejudicar a qualidade da análise e que, segundo os três especialistas consultados —todos com experiência na testagem de Covid-19 pelo método RT-PCR—, são observados com relativa frequência.

O principal é a forma como o profissional coleta a secreção, especialmente se utiliza o swab, método mais comum. Muitas equipes de saúde estão fazendo isso pela primeira vez e nem sempre passam por treinamento adequado.

Secretarias reconhecem o problema e afirmam que têm intensificado a capacitação dos funcionários.

“O vírus já é difícil detectar, com pouco material fica mais complicado ainda”, diz Ilma Brum da Silva, diretora do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde foi montado um laboratório de testes para a Covid-19.

Há ainda questões quanto ao armazenamento das amostras, que precisam ser refrigeradas, transporte e tempo até que sejam analisadas. Outro ponto, de acordo Ilma, é a qualidade dos reagentes usados nos testes.

“Aqui testamos reagentes de várias origens e tem diferenças bastante grandes. Com a pandemia, a gente ficou desesperado, não havia [o produto mais recomendado] no mercado brasileiro e começou-se a testar com o que se tinha”, diz.

Outro lado

Em nota, o Ministério da Saúde atribuiu o aumento do número de SRAG sem causa definida à maior sensibilidade nos sistemas de vigilância em razão da pandemia, indicativo de que em outros anos casos da síndrome estariam sendo subnotificados.

A pasta diz que, no SUS, são realizados testes RT-PCR e, para casos que excedem oito dias desde o início dos sintomas, testes rápidos. Estes identificam se a pessoa tem anticorpos para a Covid-19, mas são considerados menos confiáveis para um diagnóstico preciso.

A base de dados analisada pela Folha, contudo, indica que o único critério utilizado para o diagnóstico dos casos em questão foi o resultado do RT-PCR.

O Instituto Butantan, responsável pela testagem em São Paulo, afirmou que observou problemas na coleta, registro e armazenagem de amostras no início da epidemia e que, em conjunto com a Secretaria de Saúde, produziu e distribuiu material para treinar equipes.

A Secretaria de Saúde de Minas Gerais afirmou que fornece orientações para a coleta correta de amostras, mas que há diversos fatores que influenciam a análise e que problemas têm acontecido em todo o país, não só no estado.

“Mesmo o PCR sendo um teste mais sensível, nessas hipóteses, um resultado falso negativo pode acontecer, mas não há como afirmar que o aumento dos casos de SRAG seja por esse motivo”, diz.

A Secretaria de Saúde do Paraná disse que, em casos suspeitos com primeiro resultado negativo, recomenda a realização de novo exame (“preferencialmente de aspirado traqueal, se o paciente estiver intubado”) e que indica ainda a combinação do RT-PCR com testes rápidos para casos com sete ou mais dias de sintomas.

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