Descrição de chapéu Estado Alterado

Médicos brasileiros resistem a usar psicodélicos em tratamentos, diz Dartiu Xavier

Psiquiatra da Unifesp, pioneiro em pesquisas com essas substâncias, vê Brasil atrasado em debate sobre drogas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, 64, segue na contramão de muitos colegas e mantém visão liberal sobre as drogas. Implantou uma linha de pesquisa sobre psicodélicos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e critica a proibição generalizada das substâncias de abuso, a começar pela maconha.

O médico, que já foi consultor do Ministério da Saúde e da Secretaria Nacional de Drogas (Senad) do Ministério da Justiça, não vê, tampouco, incompatibilidade entre as políticas de redução de danos e internações. "Redução de danos não é contra abstinência, ao contrário, ela promove mais abstinência do que o programa que exige abstinência a priori."

*

A dependência química é uma doença? Costumo falar para meus alunos e médicos assistentes que não considero a dependência uma doença, mas reconheço a importância de passar a ser considerada uma doença, lá pela década de 1970, 1980, porque quebrava uma tendência a culpar o usuário pela situação dele. "Ele usa drogas porque ele é um fraco, não tem caráter, força de vontade." Quando se coloca que é um doente, tira-se o peso dessa responsabilidade. Foi um ganho.

Não é nada disso, é uma impossibilidade de o indivíduo exercer controle sobre o seu consumo. É isso que separa o usuário recreacional de um dependente químico.

Eu falo para meus médicos assistentes que não considero um diagnóstico porque ela é muito diversa, de indivíduo para indivíduo. Um esquizofrênico é muito parecido com outro esquizofrênico.

O que faz com que um indivíduo não consiga ser um usuário ocasional e vá para a dependência? Em geral é um problema de outra esfera, uma depressão, uma situação de exclusão social, uma família disfuncional. Nesse sentido, eu considero a dependência um sintoma.

O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, pioneiro em pesquisas com psicodélicos no Brasil
O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, pioneiro em pesquisas com psicodélicos no Brasil - Danilo Verpa/Folhapress

Mesmo não sendo uma entidade clínica, o que a psiquiatria tem de instrumentos para tratar essa condição? Como existe essa diversidade muito grande de um dependente para outro, não há resposta simples. Não há protocolo pronto, tem de montar um para cada paciente. Outro princípio geral: a maior eficácia está quando se associa medicações com psicoterapia. Qualquer um deles sozinho, a eficácia é menor.

Agora, outra discussão se impõe: o que é sucesso terapêutico? É diminuir os danos, os riscos. A velha briga da redução de danos [versus abstinência] é um falso dilema. Na prática clínica não vejo isso, vejo pessoas dependentes que me procuram querendo ficar abstinentes, das quais um terço consegue.

O modelo tradicional de tratamento visando a abstinência pega esses dois terços e diz que é fracasso terapêutico, sinto muito, não posso fazer nada. O grupo que trabalha com redução de danos diz que não acabou o tratamento para esses dois terços, podemos instituir estratégias para que se torne esse uso o menos prejudicial possível.

Num estudo nos EUA, pegaram metade e puseram num grupo que exigia abstinência, e a outra metade trabalhando com redução de danos. No primeiro programa, 30% ficou abstinente, e os outros foram desligados. De quem entrou no programa de redução de danos, após dois anos 70% estavam abstinentes.

Meio século de proibicionismo e guerra às drogas não impediram nem o consumo nem o abuso e produziram milhões de vítimas da violência. As mudanças de legislação sobre maconha sinalizam superação desse paradigma? Quando eu comecei a falar contra o proibicionismo, em 1989/90, as pessoas olhavam para mim como seu fosse completamente louco e quisesse que o mundo virasse uma baderna. Mas já havia os primeiros trabalhos mostrando a ineficácia e os danos da guerra às drogas. Isso teve algumas consequências. Essa percepção melhorou um pouco a possibilidade de pesquisa com drogas ilícitas. Foi aí que montei uma linha de pesquisa sobre drogas psicodélicas. Em 1970 seria impossível fazer isso. Em 1990 já foi possível.

A legalização da maconha é uma coisa muito delicada, uma faca de dois gumes. Veja o modelo canadense, onde existe a estatização e se tira esse mercado das mãos dos traficantes. Acho muito valioso, é um grande progresso. Nos Estados Unidos, cada estado tem uma legislação. Numa reunião em Washington, fiquei chocado com o programa do Colorado.

Chocado no bom ou no mau sentido? No péssimo sentido. Aquilo lá é um "big business", um grande negócio. Estão preocupados é com o lucro, não em tirar o controle dos traficantes, ou tirar pela questão ética ou normativa, é só para ganhar dinheiro, ganhar a fatia do bolo que estava com os traficantes. Um capitalismo selvagem horroroso.

Mas tirou ou não tirou das mãos dos traficantes? Tirou, mas só que eles não têm muito controle, por exemplo, do tipo de maconha que estão vendendo —se tem alto teor de THC, se os jovens vão usar, a distribuição fica assim oba-oba, meio liberou geral. No Canadá, não, tem regras estritas: quem usa, quando usa, quem pode comprar, a partir de que idade, existe seguimento de saúde de quem está usando, é uma coisa bem feita.

Além de maconha, é a favor da descriminalização de quais outras drogas? Descriminalização? Não tem dúvida de que deve ser para toda e qualquer droga. O indivíduo que está usando não pode ser criminalizado por aquilo. Criminalizar o indivíduo porque ele é doente eu acho um contrassenso. Ter uma política criminalizante e chamar isso de doença é um contrassenso.

Argumenta-se que os psicodélicos clássicos como LSD não deveriam figurar no Anexo 1 [lista de substâncias ilícitas] porque não causariam dependência e têm potencial terapêutico. Concorda? Sim. Trabalho há 32 anos nesse serviço que montei para tratar dependentes químicos, onde se atendem 500 consultas por mês, e a gente não vê dependência de cogumelos, de LSD. Outras drogas ainda se pode ver, mas é raríssimo, como a quetamina, outro psicodélico.

Qual a chance de que essas substâncias saiam do Anexo 1? Neste Brasil de hoje, a cada dia mais reacionário, mais medieval, vai demorar muito. Em outros países do mundo, os mais desenvolvidos, a ficha já está caindo. Acho que vamos ser dos últimos.

O que acha da avaliação de que a psiquiatria está sem alternativas para tratar transtornos como depressão, com um terço de pacientes resistentes a antidepressivos? Psicodélicos podem ser uma alternativa? Acho que sim, mas não é eureca, a descoberta mágica, o soma do Aldous Huxley. Veja o que aconteceu com a quetamina, que está sendo usada para tratamento de depressão, coisa recentíssima. Eu acho curioso que, agora que a Johnson comercializou a quetamina, nas propagandas ninguém fala de efeitos colaterais. É muito sintomático. Existem drogas do mal e do bem; as do bem você compra na farmácia e no supermercado, as do mal, com o traficante.

Sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos, há vários estudos fora do Brasil e até aqui mostrando eficácia no tratamento de depressão, estresse pós-traumático. Só que, apesar deles, existe uma resistência enorme, e não só na população geral como também da classe médica. Quando comecei a publicar artigos, a comunidade psiquiátrica brasileira quis me linchar em praça pública, enquanto a comunidade médica internacional me convidava para tudo quanto era congresso. Esse reacionarismo não é só da população, os médicos são muito reacionários no Brasil.

Fala-se numa Renascença Psicodélica, em que substâncias como LSD voltariam a ser investigadas cientificamente. Acredita nisso? Acho que tem chance, sim. Houve alguns grandes erros naquela época, em 1950, 1960, mas não se conhecia tanto neurobiologia como hoje. Hoje posso falar com segurança que não precisa se preocupar com dependência de LSD ou cogumelos, mas naquela época não se conhecia esse fenômeno.

O que acha mais promissor para aplicação clínica de psicodélicos, e para quais transtornos? O que está mais evidente é ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. Tenho recomendado a quetamina na depressão resistente para muitos pacientes, e a melhora é ótima. A psilocibina também é muito interessante, mais para transtornos ansiosos. E LSD para alcoolismo. No nosso serviço começamos a trabalhar com ibogaína [para dependência química], mas não chegamos a fazer ensaios clínicos, e também com a ayahuasca [para depressão]. A gente tentou fazer ensaio clínico, mas aí entra a resistência, a mentalidade retrógrada.


Dartiu Xavier da Silveira, 64
Doutor em psiquiatria, pesquisador de neurociência, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo. Foi consultor do Ministério da Saúde e da Secretaria Nacional de Drogas, além de presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Álcool e Drogas. Publicou 113 artigos científicos e escreveu ou organizou 13 livros, como "Panorama Atual de Drogas e Dependências" (ed. Atheneu, 2005)

Apoiado por financiamento da Open Society Foundations

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.