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Na pandemia de Covid-19, ciência chega rápido às políticas públicas, mas não de forma unânime

Postura de agências governamentais, contudo, tende a ser gargalo para embasamento nas melhores pesquisas

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São Paulo

A pandemia de Covid-19 poderá ser lembrada não só pelos quase 2 milhões de mortos (até o momento), mas também pela inédita resposta da ciência ao desafio de conter o novo coronavírus e pela implementação em velocidade recorde desse conhecimento na forma de políticas públicas.

Em estudo publicado nesta quinta (7) pela revista Science, pesquisadores da Universidade Northwestern (EUA) destacam o ineditismo do fenômeno: nunca a ciência chegou tão rápido às diretrizes de agências e governos. Estudiosos da área já haviam apontado a existência de uma espécie de abismo que faz essa relação ter sempre uma boa dose de atraso, às vezes até de anos.

As informações sobre políticas públicas foram extraídas do Overton, um grande banco de dados globais, e dizem respeito a dois terços da população mundial, 79% do PIB, e 95% das mortes por Covid-19 (até maio de 2020). Os dados sobre publicações e citações científicas são da plataforma Dimensions.

A ausência de informações sobre políticas públicas da China é digna de nota. Se é que são públicas, são particularmente difíceis de encontrar, segundo os autores.

A pesquisa analisou essa coevolução entre políticas públicas e publicações científicas no início da pandemia, entre janeiro e maio de 2020. A principal conclusão é que a ciência está, sim, sendo ouvida, mas não de forma uniforme, em todos os níveis.

Entidades intergovernamentais, como a OMS (Organização Mundial de Saúde), vinculada à ONU, são grandes adotantes de artigos científicos em suas diretrizes, especialmente os de maior qualidade. A seguir vêm think tanks, organizações dedicadas a pensar sobre grandes problemas da humanidade e propor soluções para eles.

Aqui qualidade pode ser traduzida como o respaldo dos demais cientistas a esses estudos: maior número de citações em outros artigos e disponibilização em revistas mais conceituadas, com um rigoroso processo de seleção e avaliação do estudo por outros cientistas antes da publicação.

Do outro lado dessa história estão os chamados pré-prints, artigos disponibilizados em plataformas de acesso público antes desses ritos mais formais. Esse caminho permite a rápida disseminação das descobertas científicas e o amplo escrutínio sobre o material, mas também pode ser um atalho para que estudos muito preliminares ou com incorreções ganhem um peso indevido e acabem embasando estratégias de saúde pública.

Em alguma medida era esperado que muitas das referências das políticas públicas anticoronavírus fossem novas, já que quase a respeito tudo tem sido aprendido “ao vivo”, mas os cientistas se impressionaram com a proporção dos artigos do ano de 2020 (publicados até maio) entre as citações: 19,9%, contra menos de 2% em documentos não relacionados à Covid-19.

Outro número: os artigos mencionados em políticas públicas são em média 40 vezes mais citados do que os demais, um indício da relevância dessas publicações.

“Isso parece reconfortante para os cientistas, já que a ciência certamente fez um trabalho excepcional no avanço da pesquisa relacionada à Covid-19, e é bom saber que a pesquisa encontrou rapidamente seu caminho até esses documentos de políticas públicas.” diz à reportagem Dashun Wang, um dos autores do estudo da Science.

“É provável que o padrão mude à medida que a pandemia se desenvolve. Nosso foco principal aqui é a fase inicial da pandemia, onde a política e o entendimento científico avançam rapidamente. É possível que, com o tempo, alguns dos entendimentos se tornem conhecimentos bem aceitos, o que alteraria a interação política-ciência. Também é possível que surjam novas situações, como as novas variantes virais no Reino Unido.”

Para o cientista, a enorme quantidade de dados, em tempo quase real e agora ao alcance dos pesquisadores, abre a possibilidade de planejar como deve ser a coordenação de uma resposta global em emergências de larga escala.

Por outro lado, a análise de Wang e colegas mostrou que a roda presa nesse sistema são algumas agências governamentais, que muitas vezes se valem de pesquisas incipientes e até artigos opinativos para elaborar suas diretrizes, como no caso da adoção da hidroxicloroquina e outras substâncias em protocolos de tratamento e/ou prevenção à Covid-19.

Nas contas dos pesquisadores, a probabilidade de uma organização intergovernamental respaldar suas diretrizes em dados científicos é quatro vezes a de governos fazerem o mesmo. Ainda não há um ranking, porém, que mostre quais países estão à frente nesse tipo de postura.

Para Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, que advoga pelo uso de evidências científicas em políticas públicas, “está claro que o Brasil está na contramão do mundo com nossas políticas públicas de contenção da pandemia. Enquanto o mundo aproveita os relatórios produzidos por organizações globais, como a OMS, que são embasados na evidência científica mais recente e de melhor qualidade, o Brasil embasa suas políticas públicas em artigos de péssima qualidade e pré-prints, que são pré-selecionados para justificar decisões baseadas em ideologia.”

As discrepâncias nas políticas públicas de agências governamentais são analisadas em um estudo em andamento de Wang e colaboradores. “Estamos tentando entender a heterogeneidade entre os países e se essa ela ajuda a prever a eficácia na contenção da pandemia”, diz o cientista.

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