Descrição de chapéu Coronavírus

Postos mobilizam funcionários para convencer 'sommelier de vacina' a se imunizar

Para professor de direito constitucional, dever do Estado é ofertar imunizantes eficazes e não dar ao cidadão opção de escolha

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São Paulo

“Que vacina vocês têm hoje?”. Essa é uma das perguntas mais ouvidas pelos funcionários que trabalham na triagem do megaposto de vacinação da Galeria Prestes Maia, no centro de São Paulo, feita pelos chamados sommeliers de vacina, aqueles que querem escolher qual imunizante tomar contra a Covid-19.

Se a vacina não for a que a pessoa está buscando, começa, então, uma conversa em que o funcionário repete as mesmas coisas: todas as vacinas são autorizadas, têm índice de eficácia suficiente para proteção contra a Covid-19 e não oferecem risco à saúde. Ainda assim, na última quarta-feira (23), grande parte dos sommeliers viraram as costas, pois o imunizante oferecido, Coronavac, parecia não ser suficiente.

A cena se repetiu em outros locais, como nas UBS Jardim Japão, Vila Pirituba e Nossa Senhora do Brasil e nos Centros de Saúde de Pinheiros e Escola Samuel Barnsley Pessoa. Nos dois últimos, para entender como os funcionários reagiam às perguntas, a Folha não se identificou.

Alguns recusam a Coronavac por acreditarem que sua proteção não é suficiente; outros não querem a vacina da AstraZeneca, citando possíveis efeitos colaterais. O primeiro lugar das preferências é sempre o mesmo: o produto da farmacêutica americana Pfizer.

Marcos Rogério Moraes, 43, um dos funcionários que se revezam para atender a população no megaposto do centro, conta que na maioria das vezes a recusa é feita logo na triagem. Mas há casos em que a pessoa permanece na fila para tirar a prova de que a vacina que está sendo oferecida é a que foi informada.

Paredes de mármore e dois corrimões de mármores, com a cabeça de uma mulher branca, de cabelos grisalhos, máscara de proteção e óculos aparecendo entre o corrimão e uma das paredes
Silvana Prata, 59, acredita ser parte do seu direito escolher qual vacina quer tomar - Karime Xavier / Folhapress

“Existem pacientes resistentes, eles permanecem na fila e pegam a senha. Quando chega na mesa [de vacinação], eles recusam”, conta.

Quando isso acontece, todos na fila são prejudicados. Isso porque o cadastro no banco de dados do governo é feito antes da aplicação e, quando a recusa ocorre no momento de receber o imunizante, o funcionário precisa parar para retirar os dados do paciente do sistema.

“A gente perde muito tempo explicando e tem muitos que são resistentes. Eles não tomam, preferem outra vacina. Isso acontece todos os dias, é bem frequente”, diz Moraes.

Silvana Prata, 59, foi uma das pessoas que recusaram o imunizante ainda na triagem. Suas preferências são as vacinas da Pfizer ou da Janssen –esta última ainda não tinha sido distribuída aos postos da capital. Ela já havia percorrido sete postos, sem conseguir a aplicação.

Ela acredita ter o direito escolher o imunizante que irá tomar, com base em critérios como eficácia, passaporte vacinal e número de doses (apenas uma, no caso da Janssen).

“Fui no posto da Doutor Arnaldo, era Coronavac. Cheguei aqui, é Coronavac, lá embaixo é Coronavac. Por que? Se eu tenho à disposição quatro vacinas, por que estão jogando a Coronavac? Eu tenho idade para tomar, mas quero poder escolher, nem que fosse para comprar.”

Na quinta-feira (24), o Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, no Butantan, oferecia a Coronavac. A fila chegava a sair dos portões do local de vacinação.

Uma parede de mármore ao fundo com cadeiras pretas enfileiradas na frente. Em uma das cadeiras, no canto direito da foto, uma mulher transexual loira, de máscara de proteção preta e uma blusa de frio azul escura com desenhos cor de rosa
Ana Bárbara Marcelina Macedo, 49, buscava pela vacina da Pfizer, mas por ser uma profissional da beleza, tomaria a Coronavac caso não conseguisse a sua preferência no mesmo dia - Karime Xavier/Folhapress

Um funcionário explicou a esta repórter, que não se identificou como tal, que o posto recebe a vacina que a prefeitura manda e que todas protegem contra um agravamento da doença. Ele comentou que, mesmo com tanta gente morrendo, há pacientes que preferem escolher.

No Centro de Saúde de Pinheiros, poucas pessoas aguardavam na fila da vacina. Os funcionários da triagem estavam com a responsabilidade de explicar a eficácia dos imunizantes.

Segundo um deles, o local estava vazio porque a Coronavac estava sendo oferecida. Se fosse Pfizer, disse ele, a fila iria portão afora.

Para o infectologista pediátrico e diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) Renato Kfouri, a escolha pela vacina ocorre pois parte da população olha apenas para os índices de eficácia, sem levar em consideração fatores determinantes para o enfrentamento da pandemia, como a cobertura vacinal da população.

"[Quem escolhe] não tem o discernimento de olhar para um estudo clínico e entender como se chegou no resultado”, disse. “Se metade da população for vacinada com uma vacina de 95% de eficácia, eu não controlo uma pandemia. Mas se eu tiver 90% da população vacinada com uma vacina de 50% de eficácia, a pandemia é controlada.

O medo das falhas vacinais é outra constante para os sommeliers de vacina. Kfouri explica que todos os imunizantes estão sujeitos a falhas, mas que provocar a morte é uma possibilidade muito rara, e que os índices de efetividade contra casos graves é muito semelhante entre todos os imunizantes disponíveis no Brasil.

“A porcentagem de falhas para formas leves é maior, para hospitalização é rara e mortes mais rara ainda. A efetividade delas, 60%, 70% ou 90%, mostra diferenças na prevenção da doença, mas para casos graves todas são muito boas.”

Para poder viajar e por medo de reações adversas, Ana Bárbara Marcelina Macedo, 49, buscava a Pfizer. Profissional do ramo da beleza, vive em ponte aérea entre Manaus, sua cidade natal, Londres e São Paulo. Por ser cardiopata, também tem medo de que a vacina cause alguma reação, embora não existam contra-indicações para pessoas com essa patologia.

Caso não conseguisse encontrar a vacina de sua preferência, tomaria a Coronavac. “Eu tenho que me imunizar porque eu trabalho com público. Eu gostaria que fosse com a Pfizer, mas para a minha proteção, eu vou ter que tomar [a Coronavac], mesmo não querendo.”

Roger Stiefelmann Leal, professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP, afirma que o compromisso do Estado com a população por meio do Programa Nacional de Imunização não é a de dar opções de vacinas, mas de ofertar vacinas eficazes, o que está sendo cumprido.

“O que pode ocorrer é as pessoas visitarem os postos para saber que vacinas estão sendo aplicadas, mas isso não quer dizer sobre o direito de escolha do tipo de vacina. Até onde sei, não há previsão de direito a uma determinada marca de vacina."

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