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Coronavírus

Jornalistas apontam falhas do sistema de vacinas e viram alvos dos 'puros'

Subestima-se a capacidade da população de lidar com fatos comuns, como o recall de medicamentos ou vacinas, seja por falha humana ou erro técnico

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Carlos Orsi

Editor-chefe da revista Questão de Ciência e coautor do livro Ciência no Cotidiano, da editora Contexto

Natalia Pasternak

Presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro Ciência no Cotidiano, da editora Contexto

No ano de 1985, durante a transição do regime de 1964 para a Nova República, o saudoso escritor, humorista, tradutor e jornalista Millôr Fernandes publicou um texto curto no Jornal do Brasil sob o título de Manifesto. Ali, denunciava um pacto de silêncio que se ia formando em torno das falhas das lideranças políticas que articulavam o fim do longo inverno militar. Millôr alertava que essa omertà tática oferecia salvo conduto a “peculatários, oportunistas, deixa-dissos, sobrinhos e falcões”. E fazia o chamamento: “Cabe a nós, profissionais das transparências, não perder um minuto. Dar nome aos bois”.

Ser “profissional das transparências” nunca é fácil. Quase 40 anos depois, numa emergência sanitária que eclode em meio ao maior caos (des)informativo da história humana, a tarefa se torna especialmente sensível.

A urgência de levar vacinas a todos e o imperativo de negar qualquer tipo de vantagem retórica, real ou imaginada, aos arquitetos da presente hecatombe nacional produziram sua própria omertà tática, o que no léxico atual poderíamos chama de “negacionismo do bem”: a ilusão, a ser sustentada a qualquer custo, de que o Programa Nacional de Imunizações e o Sistema Único de Saúde são perfeitos, e seus agentes, infalíveis. O profissional das transparências que ousa nos lembrar de que não há deuses abaixo das nuvens expõe o pescoço à inquisição dos puros.

Essa inquisição foi desencadeada contra os jornalistas Estêvão Gamba e Sabine Righetti, desta Folha, nos últimos dias (bem mais contra ela do que contra ele, o que mostra que mesmo a suposta pureza dos puros tem limites muito claros), por ousarem apontar que, se dados oficiais forem levados a sério, 26 mil doses de vacina contra a Covid-19 (de 105 milhões) foram aplicadas, no Brasil, fora do prazo de validade.

Por um lado, acusam os jornalistas (mas principalmente ela) de irresponsabilidade por terem divulgado uma verdade inconveniente; por outro, acusam os jornalistas (mas, de novo, principalmente ela) de incompetência, por não terem analisado os dados de forma correta: talvez as aplicações não tenham ocorrido de forma errada, mas, sim, os dados tenham sido mal inseridos no sistema. Erros de digitação não são erros de vacinação. Vinte e seis mil doses, afinal, são apenas uma fração de um ponto porcentual do total aplicado; pode ser mera falha estatística, um erro aceitável.

O jornal teria amplificado indevidamente um detalhe irrelevante e, com isso, alimentado o sentimento antivacina no Brasil. Esse argumento tem dois problemas: 1) o de que casos de erro de aplicação já foram identificados; 2) a arrogância de dizer, a milhares de brasileiros, que haver incerteza sobre o status de sua vacinação é “aceitável”.

Heidi J. Larson, uma das maiores especialistas mundiais em comunicação de vacinas, diz que um dos maiores gatilhos da rejeição de imunizantes é o cidadão se sentir “traído” ou “manipulado” por uma elite insensível.

Parece-me difícil passar metade do tempo dizendo às pessoas que a vacina é uma prioridade absoluta e a outra metade dizendo que é irrelevante saber se a dose aplicada estava ou não na validade e não soar manipulativo, traiçoeiro e insensível.

Acusam os jornalistas de causar “pânico” na população, que agora estaria correndo, desesperada, para os postos de saúde querendo saber se receberam vacina vencida. Novamente, dois erros. Primeiro: onde está o pânico? Alguém acompanhou e mensurou essa suposta reação desesperada de grande parte de população? Ou o tal pânico está nas mídias sociais dos “puros”? Um fenômeno conhecido por estudiosos de redes sociais é o da ilusão de relevância: cada um tomar (erroneamente) o que corre em feeds pessoais como relevante para o mundo real.

Segundo: subestima-se a capacidade da população de lidar com fatos comuns, como o “recall” de medicamentos ou vacinas, seja por falha humana ou erro técnico. Nenhum sistema é perfeito, e transparência diante de erros e incertezas são muito melhores para construir a tão decantada confiança do público do que silêncios cúmplices.

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