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Primeiro paciente de Covid não foi quem OMS pensa, diz cientista

Nova análise aponta que vendedora num mercado de animais em Wuhan contraiu coronavírus antes de qualquer outra pessoa

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Carl Zimmer Benjamin Mueller Chris Buckley
The New York Times

Um cientista que analisou relatos públicos dos primeiros casos de Covid-19 na China relatou na quinta-feira (18) que uma importante investigação da OMS (Organização Mundial da Saúde) provavelmente errou na cronologia inicial da pandemia. A nova análise sugere que o primeiro paciente conhecido que contraiu o coronavírus foi uma vendedora em um grande mercado de animais em Wuhan, e não um contador que vivia a muitos quilômetros dali.

O relatório, publicado na quinta-feira (18) na prestigiosa revista Science, vai reacender, embora certamente não consiga resolver, o debate sobre se a pandemia começou com uma transmissão de animais silvestres vendidos no mercado, um vazamento de um laboratório de virologia em Wuhan ou de alguma outra forma. A busca pelas origens da maior catástrofe de saúde pública em um século alimentou batalhas geopolíticas, com poucos fatos novos surgindo nos últimos meses para resolver a questão.

Instituto de Virologia de Wuhan, um dos alvos de investigações sobre a origem do coronavírus - Thomas Peter - 03.fev.21/Reuters

O cientista Michael Worobey, um dos maiores especialistas em rastrear a evolução de vírus na Universidade do Arizona, encontrou discrepâncias na cronologia ao esmiuçar o que já havia sido publicado em revistas médicas, além de entrevistas em vídeo em um canal de notícias chinês com pessoas que seriam as duas primeiras identificadas com a infecção.

Worobey afirma que as ligações da vendedora com o Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, bem como uma nova análise das conexões dos primeiros pacientes hospitalizados com o mercado, sugerem fortemente que a pandemia começou lá.

"Nessa cidade de 11 milhões de habitantes, a metade dos primeiros casos está relacionada a um lugar do tamanho de um campo de futebol", diz Worobey. "Fica muito difícil explicar esse padrão, se o surto não tiver começado no mercado."

Vários especialistas, incluindo um dos investigadores da pandemia escolhidos pela OMS, disseram que o trabalho de detetive de Worobey foi sólido e que o primeiro caso conhecido de Covid foi muito provavelmente uma vendedora de pescado.

Mas alguns deles também disseram que as evidências ainda são insuficientes para responder de forma decisiva à pergunta maior de como a pandemia começou. Eles sugeriram que o vírus provavelmente infectou um "paciente zero" algum tempo antes do caso da vendedora, e então atingiu massa crítica para se espalhar amplamente no mercado. Estudos de mudanças no genoma do vírus —incluindo um feito pelo próprio Worobey —sugeriram que a primeira infecção aconteceu aproximadamente em meados de novembro de 2019, semanas antes de a vendedora adoecer.

"Não discordo da análise", diz Jesse Bloom, especialista em vírus do Centro de Pesquisa de Câncer Fred Hutchinson. "Mas não concordo que qualquer um dos dados seja suficientemente forte ou completo para dizer qualquer coisa com muita confiança, exceto que o mercado de peixes de Huanan foi claramente um evento de superdisseminação."

Bloom também observou que esta não foi a primeira vez que se descobriu que o relatório da OMS, feito em colaboração com pesquisadores chineses, continha erros, inclusive envolvendo potenciais ligações dos primeiros pacientes com o mercado.

"É meio inacreditável que em todos esses casos ainda haja inconsistências sobre quando isso aconteceu", afirma.

"O erro está aí"

No final de dezembro de 2019, médicos de vários hospitais de Wuhan notaram casos misteriosos de pneumonia surgindo em pessoas que trabalhavam no Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, um espaço úmido e mal ventilado onde se vendiam peixes, aves, carne e animais silvestres. Em 30 de dezembro, as autoridades de saúde pública disseram aos hospitais para relatar quaisquer novos casos ligados ao mercado.

Temendo uma repetição da síndrome respiratória aguda grave (Sars), que surgiu em mercados de animais chineses em 2002, as autoridades locais ordenaram o fechamento do mercado de Huanan e os policiais de Wuhan o interditaram em 1º de janeiro de 2020. Apesar dessas medidas, novos casos se multiplicaram na cidade.

As autoridades de Wuhan disseram em 11 de janeiro de 2020 que os casos começaram em 8 de dezembro. Em fevereiro, elas identificaram o primeiro paciente como um residente de Wuhan de sobrenome Chen, que adoeceu em 8 de dezembro e não tinha ligação com o mercado.

As autoridades chinesas e alguns especialistas externos suspeitaram que a porcentagem inicialmente elevada de casos ligados ao mercado pode ter sido uma falha estatística conhecida como viés de identificação. Eles argumentaram que o pedido em 30 de dezembro das autoridades para relatar doenças relacionadas ao mercado pode ter levado os médicos a negligenciar outros casos sem esses vínculos.

"No início, presumimos que o mercado de frutos do mar poderia ter o novo coronavírus", afirma Gao Fu, diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças da China, em maio de 2020, de acordo com a rede de televisão China Global. "Mas agora descobrimos que o mercado é uma das vítimas."

Especialistas chineses que investigaram a origem do coronavírus rebateu sobre o relatório feito pela OMS. - EFE-31.mar.2021/Roman Pilipey

Na primavera de 2020, membros graduados do governo Trump promoviam outro cenário para a origem da pandemia: que o vírus tinha escapado do Instituto de Virologia de Wuhan, que tem um campus a cerca de 12 quilômetros do mercado de Huanan, do outro lado do Rio Yangtze.

Em janeiro deste ano, pesquisadores escolhidos pela OMS visitaram a China e entrevistaram um contador que teria desenvolvido sintomas em 8 de dezembro. Seu influente relatório de março de 2021 o descreveu como o primeiro caso conhecido.

Mas Peter Daszak, ecologista de doenças da EcoHealth Alliance que participou da equipe da OMS, disse que se convenceu, pela análise de Worobey, de que eles estavam errados.

"A data de 8 de dezembro foi um erro", disse Daszak.

A equipe da OMS não perguntou ao contador a data em que seus sintomas começaram, afirma. Em vez disso, eles receberam a data de 8 de dezembro de médicos do Hospital Hubei Xinhua, que cuidaram de outros casos iniciais, mas não se dedicaram a Chen. "Portanto, o erro está aí", diz.

Para os especialistas da OMS, segundo Daszak, a entrevista foi um beco sem saída: o contador não tinha ligações aparentes com um mercado de animais, um laboratório ou uma aglomeração de pessoas. Ele disse que gostava de passar o tempo na Internet e correr, e que não viajava muito. "Era o mais 'normal' que você poderia imaginar", afirma Daszak.

Se a equipe tivesse identificado a peixeira como o primeiro caso conhecido, explicou Daszak, teria feito perguntas mais diretas, como em que barraca ela trabalhava e de onde vinham seus produtos.

Enquanto os médicos do Hospital Hubei Xinhua disseram que o início da doença do contador havia ocorrido em 8 de dezembro, um médico graduado do Hospital Central de Wuhan, onde Chen foi tratado, disse a um veículo de comunicação chinês que ele desenvolveu sintomas por volta de 16 de dezembro.

Questionada sobre o caso de Chen, a Comissão Nacional de Saúde da China disse que apoia os comentários feitos por Liang Wannian, líder do lado chinês da investigação da OMS-China, que conduziu a entrevista com os médicos do Hospital Hubei Xinhua. Liang disse em uma entrevista coletiva em fevereiro deste ano que o primeiro caso de Covid apresentou sintomas em 8 de dezembro e "não estava conectado" ao mercado de Huanan.

Erros e inconsistências

Em seu relatório, os especialistas da OMS concluíram que o vírus provavelmente se transmitiu para as pessoas a partir de animais, mas eles não puderam confirmar se o mercado de Huanan foi a fonte. Em contraste, disseram que um vazamento de laboratório era "extremamente improvável".

Em maio, dois meses após a publicação do relatório da OMS e da China, 18 importantes cientistas, incluindo Worobey, responderam com uma carta na Science reclamando que a equipe da OMS deu pouca atenção à teoria do vazamento de laboratório. Muitas outras pesquisas seriam necessárias, eles argumentaram, para determinar se uma explicação era mais provável do que a outra.

Um especialista nas origens da gripe e do HIV, Worobey tentou juntar as peças dos primeiros dias da pandemia de Covid. Lendo um estudo de maio de 2020 sobre os primeiros casos, escrito por médicos locais e autoridades de saúde de Wuhan, ele ficou intrigado ao ver uma descrição que parecia com Chen: um homem de 41 anos sem contato com o mercado de Huanan. Mas os autores do estudo dataram seus sintomas em 16 de dezembro, não em 8 de mesmo mês.

Então Worobey encontrou o que parecia ser uma segunda fonte independente para a data posterior: o próprio Chen.

"Tive febre no dia 16, durante o dia", disse um homem identificado como Chen em uma entrevista em vídeo em março de 2020 para The Paper, publicação sediada em Xangai. O vídeo indica que Chen é um homem de 41 anos que trabalhava no escritório financeiro de uma empresa e nunca foi ao mercado de Huanan. Relatórios oficiais diziam que ele morava no distrito de Wuchang, em Wuhan, a quilômetros do mercado.

O New York Times não conseguiu confirmar de forma independente a identidade do homem no vídeo.

Junto com a febre em 16 de dezembro, Chen disse que sentiu um aperto no peito e foi ao hospital naquele dia. "Mesmo sem nenhum exercício extenuante, com um mínimo de esforço, como estar falando com você agora, eu ficava sem fôlego", disse ele.

Worobey disse que os registros médicos mostrados no vídeo podem conter pistas de como o relatório da OMS-China acabou com a data errada. Uma página descrevia a cirurgia de que Chen precisava para extrair dentes. Outra era uma prescrição de antibióticos em 9 de dezembro, referindo-se a uma febre na véspera —possivelmente o dia da cirurgia dentária.

No vídeo, Chen especulou que ele pode ter adquirido Covid "quando fui para o hospital" —possivelmente uma referência à cirurgia dentária.

Ligações obscuras

Na cronologia revisada de Worobey, o caso mais antigo não é o de Chen, mas o da vendedora de peixes, chamada Wei Guixian, que desenvolveu sintomas por volta de 11 de dezembro. (Wei disse no mesmo vídeo publicado pela The Paper que seus sintomas graves começaram em 11 de dezembro, e ela disse ao The Wall Street Journal que começou a se sentir mal em 10 de dezembro. O relatório da OMS-China listou um caso de 11 de dezembro vinculado ao mercado.)

Worobey descobriu que os hospitais relataram mais de uma dúzia de casos prováveis antes de 30 de dezembro, dia em que as autoridades de Wuhan alertaram os médicos para estar atentos a ligações com o mercado.

Ele determinou que o Hospital Central de Wuhan e o Hospital Hubei Xinhua reconheceram, cada um, sete casos inexplicáveis de pneumonia antes de 30 de dezembro, que seriam confirmados como Covid-19. Em cada hospital, quatro em cada sete casos estavam relacionados ao mercado.

Ao se concentrar apenas nesses casos, argumentou Worobey, ele podia descartar a possibilidade de que o viés de identificação distorceu os resultados em favor do mercado.

Ainda assim, outros cientistas disseram que não há a menor certeza de que a pandemia começou no mercado.

Equipe da OMS que foi à China investigar origem do coronavírus, ao chegar ao aeroporto de Xangai - Aly Song - 10.fev.21/Reuters

"Ele fez um excelente trabalho reconstruindo o que pôde a partir dos dados disponíveis, e é uma hipótese tão razoável quanto qualquer outra", disse o médico W. Ian Lipkin, especialista em vírus da Escola Mailman de Saúde Pública da Universidade Columbia. "Mas acho que nunca saberemos o que está acontecendo, porque isso foi há dois anos e ainda está obscuro."

Alina Chan, pós-doutoranda no Broad Institute em Cambridge, Massachusetts, e uma das maiores defensoras da investigação de um vazamento de laboratório, disse que apenas novos detalhes sobre casos anteriores —que remontam a novembro —ajudariam os cientistas a identificar a origem.

"O principal problema que isso aponta", afirma, "é que falta acesso aos dados e há erros no relatório da OMS-China."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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